o Locutor da Madrugada

Um conto erótico de Locutor
Categoria: Heterossexual
Contém 3187 palavras
Data: 05/06/2017 15:39:56

O prefixo (o velho Sentimental Jouney) já estava no ar, precisava dum impulso.

No sábado passado, recorrera ao uísque, mas só conseguira uma bela dor no fígado. Quem não tem cancha enrola a língua logo na segunda dose, amolece, e ela ia depender das palavras.

Colocou-se diante do espelho, vendo-se inteira, à luz do abajur.

Já sabia o que ia fazer. Foi desabotoando a blusa, cinco botões, cinco obstáculos, mas uma enxurrada de comerciais rompeu a corrente.

Permaneceu imóvel, como manequim de vitrina, à espera de novo estímulo.

Ouviu a voz dele, amável e máscula, cumprimentando os ouvintes.

Seus dedos voltaram a movimentar-se em câmara lenta.

Deixou cair a blusa macia no carpete. Nova imobilidade, mas não passiva,, não covarde, apenas para retomar consciência, talvez para curtir a sensação.

Contorceu o corpo à esquerda e puxou o zíper da saia, já com certa graça, mais leveza, os dedos mais soltos.

Segurando a respiração, fez a saia deslizar sobre as ancas, como se a puxassem para baixo.

Ergueu um pé, depois outro, e livrou-se dela.

Então sorriu para o espelho, um sorriso calculado, muscular, retido.

Não era aquilo ainda: tinha que abrir mais a boca, exibir a língua, os dentes, começar a mostrar-se por dentro.

A segunda tentativa a satisfez.

Num gesto contínuo, retirou o sutiã, como se o quarto fosse um palco e num arremesso largo jogou-o sobre o rádio.

Teve a impressão de ouvir um disco de palmas. Mantendo o sorriso, já maduro e liberto, dando ritmo aos movimentos, foi descendo a calcinha, centímetro a centímetro, a exagerar provocantemente a resistência do elástico. Tira ou não tira? O senhor aí? Tira? Explorou a situação como se tivesse pudor.

Era o suspense, o grande momento, que ela imaginava ser assim, pois o marido jamais a levara ver um strip.

Com gesto estancado, agora só os lábios móveis, girou na direção e fixando o rádio, deu continuidade a seu pequeno show.

A última peça, com o peso duma borboleta, voou pelo quarto, caindo sobre o peitoril da janela.

Aí voltou-se ao espelho, sorrindo em desafio, e amadoristicamente começou a imitar as poses das revistas exclusivas para homens.

À procura da perfeição, soltou os cabelos, o que a tornava mais jovem.

Olhou casualmente à sapateira e recebeu imediata sugestão.

Escolheu os sapatos de tacos mais altos, um par vermelho que jamais usara, condenados pelo marido.

Calçou-os sentindo o prazer da coisa nova.

Agora, sim, estava vestida para o passeio. Era mais emocionante do que o strip.

Sensações de montanha russa com reflexos no estômago.

Sua sensualidade não cabia no quarto.

Tinha que se movimentar pelo espaçoso apartamento às escuras.

Chegou ao living e por um instante sentou-se ao divã para acostumar a vista.

Voltou a andar, gozando a libertação, dando a cada passo ação própria e impetuosa.

Ensaiava a difícil arte de andar, pisar no chão com segurança e balanço.

Entrou no quarto do filho.

O capacete, a raqueta, o retrato da namorada.

Mostrou-lhe a língua.

Nua e compacta, passou pela cozinha e pelo quarto da empregada, que folgava.

Queria andar, partir, afrontar.

Parou, no entanto, diante da área de serviço, descoberta, sobre a ruazinha lateral.

Alguém fumava à janela no edifício fronteiro.

A lâmpada de mercúrio do poste a tornaria visível a ele e a qualquer um que surgisse num dos andares mais elevados.

Ficou espiando, o rosto colado na coluna, os olhos do homem à janela.

Nada a deteria.

Num momento que ele fitou a esquina, apenas uma fração de segundos, atravessou a área, sentindo em todo o corpo o frio da rua, iluminado como outdoor pela luz do poste.

O homem continuava à janela, fumando.

Se curvasse à altura da mureta, poderia retornar sem risco.

Mas quase rastejando sua nudez seria inútil.

Logo que o homem da janela deu oportunidade, cruzou a área, porém andando quase normalmente.

Percebeu que inventara um jogo interessante.

Podia ir mais fundo e aperfeiçoar emoções.

A idéia era fazer a travessia sem constatar se o fumante continuava à janela.

Reteve a respiração, convenceu o coração a controlar-se e partiu.

Uma sensação tão completa e concreta, impregnada pelos elétrons noturnos e fervilhantes, merecia ser repetida.

Foi o que fez algumas vezes, muitas vezes, não soube quantas vezes.

Em alguns turnos, chegou a sentir no seio e nas nádegas o toque de olhar masculino. Ainda não esgotara a experiência.

Podia ir além.

Na travessia que determinou ser a última, imaginou uma chave de ouro.

No meio do caminho, num lance aparente mente sem premeditação, voltou-se para a janela com as pernas um tanto abertas e os seios empinados mostrando-se toda e fixa ao espectador da janela.

Decepção, estava fechada. Retornou ao quarto com ódio.

Se o vizinho cerrara a janela, decerto não a vira passar uma só vez.

Desperdiçara toda aquela emoção, jogara-a ao vento.

Ouviu a voz redonda do locutor lendo ou improvisando uma crônica sobre bares vazios, mulheres rejeitadas e notívagos desesperados, os mesmos temas.

Aproximou-se do telefone, mas o que viu, transparente, foi a calcinha no peitoril da janela.

Um homem, na rua, saía dum carro para entrar no bar. Sem refletir nem ensaiar, jogou-a sobre ele.

Apesar da leveza do dardo, acertou no alvo móvel.

Cautelosamente, de cima viu o homem abaixar-se para ver o que o atingira com tanta suavidade.

Recuando, embora ainda fitando a rua, viu o homem junto ao carro, apertando uma bola de náilon na mão, a olhar curiosamente para as janelas.

O jogo podia continuar.

Foi buscar o sutiã sobre o criado-mudo, onde caíra.

Seu alvo, com a calcinha na mão, ia entrar no carro.

Deu um ligeiro nó no sutiã e atirou-o.

Quando ele curvou-se para descobrir o que o atingira desta vez, ela pôs a cabeça toda para fora da janela.

Era alto, meio calvo e vestia um terno azul. Largou-se na cama, a cabeça perto do rádio.

A voz do locutor parecia mais coloquial, em circuito fechado.

A mesma cena de quase todas as noites com uma diferença: a censura destravada, o sistema eletrossexual mais treinado e testado, sentiu que podia telefonar.

Tirou o fone do gancho e discou os sete números.

Ao ouvir o primeiro chamado, receou acovardar-se outra vez.

Mas, nua, sabia onde buscar sua força.

Desceu a mão, fazendo os dedos escorregarem pelo seio como alpinista.

Com o impulso, prosseguiram a viagem pelo ventre.

Enquanto ouvia os chamados, movimentava os dedos, forçava-os contra a carne, escondia-os em sua espessa penugem.

Não era com a garganta, mas com o sexo, que dialogaria com o locutor da madrugada.

Que lhe diria tudo que acumulara naquelas mil noites.

Depois, inventaria um nome qualquer e desligaria.

Ele não estava ao microfone, porém ninguém atendia.

Quando se aproximou do gozo, temeu desperdiçar outras emoções.

Interrompeu os movimentos e repôs o fone. Derrotada, girou o botão do rádio e apagou o abajur.

Nem som nem luz.

Apenas o tique-taque do relógio e os ponteiros luminosos.

Acompanhou a quase imperceptível marcha deles por cinco minutos.

Parecia dormir, mas subitamente levantou-se, acendeu a luz geral e começou a vestir-se. O elevador deixou-a na garagem deserta e sem ecos.

Todos viajavam nos fins de semana. Pediu ao zelador para abrir-lhe a porta do carro.

Acionou o motor do carro e subiu a rampa. Viu o homem alto de terno azul.

Incrível, mas ainda permanecia ali, andando pela calçada a olhar aflitamente para cima.

Antes de arrancar, olhou-o como se quisesse identificar-se. Ele correspondeu, surpreso, mas a bola de náilon pesou-lhe nas mãos e preferiu fixar-se nas janelas. Pisou no acelerador, ganhando a rua, porém ao fazer a primeira curva seu sistema nervoso entrou em curto.

Temeu não ir além dum mero passeio.

Resolveu, antes, voltear o quarteirão. Por quê? Talvez para rever o homem que apanhara as peças de seu strip.

Foi retornando ao ponto de partida em marcha lenta com um desejo menos vago.

Faria o que seus sentidos mandassem.

Viu a frente de seu edifício coberta pela neblina. O homem não estava ali, o homem já tinha ido.

Desorientada, no caos, pensou em retornar à garagem.

Parou o carro, inclinada a desistir de tudo.

Ligou o rádio para fumar um cigarro.

A voz do locutor soou dentro daquele conforto macio.

Falava da solidão, inclusive de sua solidão de profissional retido numa cabina.

Ficou a ouvi-lo.

De repente percebeu que o carro era arrastado por uma atração magnética.

Deslizava pelo asfalto, sem ruído, aumentava de velocidade, desobedecia um sinal, começava a correr, a correr.

O que prentendia? Que algum guarda de trânsito lhe tirasse a carteira de motorista, obrigando-a a voltar? Nunca dirigira com aquele fogo como se perseguisse ou estivesse sendo perseguida.

À frente, o asfalto molhado, dos lados, vertiginosamente, as portas de ferro ondulado das casas comerciais.

Ruas, travessas, ladeiras do antigo centro da cidade, com seus edifícios anteriores ao advento do cimento armado, pesadões e escuros, onde os raros transeuntes àquelas horas também pareciam velhos, como as ruas e os prédios, e moviam-se num ritmo arrastado de décadas passadas. Ao brecar seu carro moderno diante do casarão cinzento de alguns andares, que era a emissora, sentiu-se exausta e olhou a rua como se fosse uma terra estranha.

Não imaginava como conseguira dirigir até lá sem perder-se ou fazer perguntas.

Apenas algum tempo depois virou o rosto à direita e viu a porta, uma simples porta de madeira entalhada com uma folha aberta para quem quisesse entrar.

Havia uma indecisa luz amarelada no hall e outra um pouco mais viva no fundo, a do elevador, que era gradeado, desses que miraculosamente ainda funcionam em velhos hotéis nas proximidades das estações ferroviárias. Sentada, a ouvir a voz aveludada do locutor, via a porta aberta como um convite ou desafio.

Não soube quanto tempo permaneceu ali. Ao transpor a porta, ainda não tinha certeza.

Seguiu até o elevador, a ouvir os tacos de seus sapatos soarem nos ladrilhos do hall, e foi parar ante as grades a observar suas enegrecidas paredes almofadadas.

Se alguém o chamasse, e ele subisse, abandonaria o edifício.

Qualquer movimento ou passos seria o ponto final da aventura.

Quando leu "É proibido fumar", já estava dentro dele, apertando o botão do quarto e último andar.

Nenhuma ascensão anterior foi mais demorada.

Fechou os olhos a ouvir o ranger daquela velha carroça aérea, que balançava e batia nas laterais do fosso. Ao abrir os olhos, leu o nome da emissora, em letras apagadas, numa porta de vidro, com dobradiças, como mera entrada de consultório de dentista.

Saiu do elevador e empurrou a frágil porta que se abria para um corredor estreito e com pouca luz.

Imaginou que, mesmo na madrugada, houvesse gente circulando, mas não viu ninguém.

Nem a telefonista estava no PBX, adornado com uma xícara plástica de café que servira de cinzeiro.

Foi seguindo a ouvir uma música da velha guarda.

Algumas portas entreabertas.

Viu um piano com suas teclas amareladas, uma pia da mesma decrépita tonalidade com uma torneira que pingava e uma sala com casulos para discos.

O cheiro cáustico, de urina, que exalava de uma das portas, impeliu-a a prosseguir. Ouviu então a voz.

Reconheceu-a instantaneamente.

Agora não podia recuar.

Lá estava o luminoso: NO AR.

Viu uma parede vidrada, como um aquário, onde um técnico de som, em mangas de camisa, olhava atento dois enormes pratos que giravam.

A presença de um homem, que não era o locutor, acordou-a.

Toda a covardia voltou duma só vez.

Permaneceu parada, junto à parede, à espera da música para desaparecer.

Nesse instante, o homem do som ergueu a cabeça e viu-a.

Em seguida, fez um sinal maroto à cabina, enquanto colocava um disco no prato.

Ela ia voltar-se à toda pressa, quando a porta da cabina se abriu. O locutor olhou-a com surpresa e interesse e caminhou para ela como se reencontrasse uma velha amiga.

Percebeu apenas que era um cinqüentão de tez escura e quase toda a cabeleira branca.

Não vestia paletó, mas conservava a gravata desajustada no colarinho desabotoado.

A voz era uma, o corpo era outro.

Segurando-lhe a mão, levou-a à cabina onde o espaço era preenchido pela pequena mesa de locução e duas cadeiras.

Janela, só uma, na técnica.

Ao sentar-se, o técnico, malicioso, mas disfarçando seu embaraço, afugentava uma mariposa com um trapo de camurça.

O locutor, extasiado com a visita, expressava com dentes escuros sua satisfação.

Disse que raramente alguém comparecia ao programa para conhecê-lo.

Não era assim, noutros tempos, quando trabalhava no horário nobre. A um toque de campainha da técnica, o locutor apanhou sobre a mesa um maço de fichas verdes.

Não improvisava, como descobria agora.

E as pausas, cheias de in tenções que comumente fazia, eram abertas pela má iluminação ou provável miopia.

Evidentemente não era o autor das românticas e sensuais legendas da madrugada.

No intervalo musical seguinte, o técnico, mais para vê-la de perto, entrou na diminuta cabina com duas xícaras de café duma garrafa térmica.

Experimentou, estava frio e amargo.

O locutor, aproveitando o descanso, procurava ganhar intimidade, mas sem as fichas pouco tinha a dizer e sua própria voz soava diferente.

O microfone dava-lhe mais timbre e masculinidade. Antes de ler nova batelada de fichas, o locutor saiu da cabina e foi à técnica conversar com o homem do som.

Disse-lhe algumas palavras, perto do ouvido, apontando a um dos pratos, e a um gesto de assentimento voltou depressa, acendendo inquietamente um cigarro.

Desta vez leu sem capricho, aos tropeços, desatento, esquecendo de arredondar as palavras.

Aquela ansiedade, que lhe afetava a respiração, tornava-o mais velho e gasto.

Ela tinha a seu lado alguém ainda mais tenso e desarvorado. Assim que ele concluiu a leitura, o técnico soltou um long play do Trio Los Panchos e evaporou-se.

O locutor, tomando-a pelo braço, delicado, mas com firmeza, levou-a à técnica.

Supondo que ia mostrar-lhe como tudo funcionava deixou-se conduzir.

Ao encostar a porta, balbuciou que haveria uma seqüência de três números musicais e firmou as mãos em sua cintura.

Haveria tempo, mas tinha que se apressar.

Ela não entendeu e correspondeu parcialmente quando lhe deu um vacilante beijo na boca.

Contou-lhe que era casada, tinha um filho, e que só fora até lá para conhecê-lo, sem outra intenção.

O locutor começou a suplicar, com uma voz débil que não era aquela que conhecia, mas suas mãos ganharam força de jovem e conseguiram dobrá-la sobre a mesa de som.

No mesmo instante deitou de frente, cobrindo-a com seu corpo. A posição, o som altíssimo do bolero e o calor de brasa do momento atordoaram-na.

Uma mariposa girando em torno da lâmpada deu-lhe a impressão fugidia de estar num trem em acelerada velocidade.

Agitava os braços e as pernas como alguém que se afogasse numa piscina rasa.

Gritar não podia, pois por mais que evitasse, ele a beijava com insistência e desespero, introduzindo a língua em sua boca.

Mesmo se pudesse, não haveria ninguém para socorrê-la.

Algo tombou sobre seus cabelos, era a garrafa térmica, mal arrolhada, que derramava café sobre a mesa de aço e umedecia-lhe as pontas dos cabelos.

Virou a cabeça à direita, fugindo da ávida boca do locutor e viu o long play girando sobre o prato e sobre ele, ondulando e caminhando, a agulha do pick-up. As mãos dele ergueram-lhe o vestido e ela viu o homem alto, de terno azul, a apertar nas mãos a bola de náilon e a olhar as janelas do edifício.

Seria o momento de escapar, mas continuou com os olhos na agulha, que mostrava a passagem do tempo como a areia duma ampulheta.

Sobre ela, o locutor, já livre do empecilho, pedia-lhe que facilitasse tudo, dando a convicção de que sua voz era também propriedade dos sulcos do disco. A mariposa ainda sateliteava ao redor da lâmpada, talvez a mesma que o técnico tentara espantar ou matar com o pano.

Pela primeira vez, baixou o olhar e viu o rosto do locutor a um palmo do seu, os olhos empapuçados, os lábios esticados, a pele metralhada, coberta de pequenos orifícios, e imobilizado como um boneco, numa sofrida espera que não obedecia aos movimentos compulsivos do corpo. Voltou a agitar-se e nessa ação derrubou a garrafa térmica, ficando em seu lugar, sobre a mesa, uma mancha irregular de café.

O som do Trio Los Panchos, algo sobre Cristo del Rio, de uma alegria superficial, parecia crescer, sufocar como fumaça.

O locutor também virou o rosto para a agulha com receio de que ela, já no final do trajeto, derrapasse no último sulco.

Olhando ambos na mesma direção, as faces coladas, foram envolvidos por igual expectativa, enquanto ela, num esforço maior, procurava enxergar a parede de vidro da técnica, por onde o homem do som podia estar espiando.

Sentiu-se, então, toda nua e com frio, atravessando a área de serviço, observada por alguém da janela, do outro lado da rua. O locutor tornou a balbuciar coisas, palavras molhadas, enfiando a cabeça em seus cabelos, forçando-a a virar o rosto para a janela, quando viu à distância, perdida na noite esbranquiçada, a única luz dum edifício mais alto.

Quem sabe, uma mulher solitária que ouvisse o Trio Los Panchos.

Foi a imagem que mais a fez vibrar, que mais a acionou, e, com os olhos na luz que às vezes a neblina escondia, apertou aquele corpo com uma energia que seus braços desconheciam, e impôs o seu ritmo abrindo e erguendo as pernas no ar. Num recuo brusco, quando o famoso trio preparava os agudos finais, o locutor desligou-se do corpo dela, dizendo que chegava e pedindo-a que o deixasse, a abo toar-se com uma pressa ridícula, preocupado em voltar à cabina e apanhar as fichas verdes.

Mal ele abandonou a técnica, ouvindo o resvalo da agulha, ela o viu pelo vidro entrar na cabina, pigarreando para limpar a voz.

Não suportou ficar mais um instante lá.

Sem olhar para mais nada, abriu a porta e precipitou-se pelo corredor, chutando a térmica em sua fuga.

O homem do som vinha vindo num embalo e foi quase derrubado, tendo que se amparar com as mãos espalmadas na parede.

Não lhe pediu desculpas nem parou.

Correu até o elevador e pôs-se a apertar freneticamente o botão de chamada.

Não teve paciência.

Desceu pela escada os quatro andares num só fôlego. Em pijama muito bem passado, fumando, o marido estava placidamente estirado na cama.

Algo saíra errado, algum desastre sentimental o obrigara a voltar antes das duas num sábado.

Perguntou-lhe com formal interesse onde fora.

Reunindo palavras a esmo disse que saíra com uma amiga.

Mas não deu para encará-lo.

Foi meter-se sob o chuveiro.

Embora demorasse o suficiente para muitos banhos, voltou deprimida com a intenção rascunhada de contar-lhe tudo. O marido já apagara a luz geral, só com o abajur aceso, e ainda fumando, inconformado com alguma coisa.

Num breve lance ela entrou sob o cobertor e virou a cabeça para o criado-mudo.

Não viu o rádio.

O rádio não estava lá.

Olhou ao redor, procurando-o, quando ouviu bem clara e sonora a inconfundível voz do locutor da madrugada.

Estremeceu, ia gritar, abriu a boca.

Ia gritar. - Não se incomoda se ouço um pouco o rádio, querida? Estou sem um pingo de sono.

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 0 estrelas.
Incentive Estudador a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários