ACRÔNICO. Parte 9.

Um conto erótico de Ralph.
Categoria: Homossexual
Contém 1448 palavras
Data: 16/04/2017 21:04:06
Assuntos: Gay, Homossexual

A melhor forma de me prender à realidade e fugir dos momentos em que a fantasia se mostrava mais confortável seria ficar ainda mais próximo do meu trabalho e ocupar todos os espaços vazios na minha cabeça, mesmo que isso fizesse com que a imagem de Bernardo se esmaecesse com o tempo e eu sabia que isso poderia acontecer. Da forma mais clichê possível: cada escolha, uma renúncia.

Eu estava escolhendo minha sanidade mental.

Envolver-me em projetos além da minha bolha produtiva era tudo que eu precisava e a oportunidade surgiu quando eu recebi uma foto pelo celular. Catarina dizia na mensagem que eu tinha perdido todo o processo de criação do cenário da peça teatral que montava e que aquela era a última oportunidade de dar algum pitaco. Ela estava certa. O texto da peça era dela, mas tinha um dedo meu em algumas ideias. Eu não exigi nenhum crédito pelo que tínhamos feito juntos, mas Catarina insistia que eu tinha que participar mais dos seus projetos. Oportunidade perfeita de acumular mais tarefas e menos pensamentos.

Ela disse-me que o teatro era pequeno e parecia algo mais alternativo. Era como se tivessem colocado um palco dentro de um minúsculo galpão. Mas aí é que estava o charme da coisa toda. O nome de Catarina não era lá tão importante e por isso suas peças eram montadas de forma independente, com a ajuda de algumas pequenas companhias teatrais. Aquilo que ela fazia não lhe rendia tanto dinheiro, mas o seu amor pela coisa era visível.

Quando cheguei apenas as luzes do palco estavam acesas, o que já moldava o ambiente. Os três atores principais estavam num canto e discutiam algo de forma ruidosa. Talvez eles estivessem ensaiando. Pouquíssimas pessoas caminhavam sobre o palco e pareciam apreensivos por ter alguém no alto daquilo que observavam. O alvo de suas preocupações era um andaime colocado no fundo do palco. As barras de ferro não tinham sido pintadas, o que oferecia à peça um ar mais rústico e industrial. Combinava perfeitamente com a própria estrutura do teatro. A luz tinha sido pensada de forma que, ao ser direcionada para as barras, provocava linhas em forma de sombras no palco e eu já conseguia ver a ligação que aquilo tinha com o texto de Catarina: três irmãos que discutiam sobre o melhor destino para as férias familiar. Eles estavam em momentos diferentes da vida e por isso um embate era inevitável. No decorrer da peça, os conflitos e as diferenças são mostradas nos vários níveis do andaime montado. Os assuntos abordados iam da intimidade entre irmãos ao atual cenário político e o drama era base de tudo, mas havia muitas pitadas de humor e uma dose muito caprichada de palavrões.

Sorrateiramente, eu atravessei as cadeiras no escuro e encontrei Johnny, o namorado de Catarina, ao lado da primeira fileira de cadeiras e o mais próximo possível do palco.

– Onde ela está? – Eu sussurrei de forma muito intima sobre o ombro dele.

– Olha só! Quem é vivo sempre aparece – ele brincou antes de responder. – Serve aquela lá? – Ele apontava para a estrutura. De fato eu não visto nenhum corpo ali até me aproximar.

– Você fala daquele ser inquieto entre as barras?

– Sim, aquela barata tonta. Conhece?

Eu queria ter soltado uma risada mais controlada, porém era difícil se segurar quando Johnny tirava sarro da própria namorada.

Quando mais próximo, Catarina me viu e enfim saiu daquele emaranhado de barras de ferro e deu uma corridinha até a borda do palco onde eu estava.

– Finalmente!

– Pulemos a parte das explicações e demais justificativas – eu me antecipei e a deixei apenas com um sorriso no rosto.

– Suba aqui! – Ordenou.

Havia uma sensação especial ao estar em cima do palco e eu adorei caminhar por ele enquanto o resto da equipe conversava sobre o centro das atenções naquele momento.

– Suas primeiras impressões. – Ela incitou-me.

– Eu jamais pensaria nisso. Um andaime representa com perfeição as prioridades e conflitos do seu texto – eu terminei admirando a grandiosidade da estrutura quanto vista de perto.

– Nosso texto! – Ela completou. – Tive a ideia quando passava pela avenida, aquela central, e uma fachada estava sendo reformada. Dois construtores discutiam em diferentes níveis.

– É isso! – Eu exclamei.

– É isso! – Ela confirmou, exaltada. – E obrigada por ler o texto. Achei que nunca mais teria um feedback seu. Há quanto tempo não nos vemos?

– Já vai começar com o drama? – Eu revirei os olhos, deixando-a sozinha e falando enquanto caminhava pela estrutura. – Só foram algumas semanas. Meses, talvez. Mas nada que invoque todo esse drama aí.

– Não reclamo. Já estou acostumada. E outra, não posso culpá-lo por ficar famoso. Aliás, seus livros esgotaram? Eu não os vi em frente a livraria aqui perto.

Eu tive que rir.

– Com as vendas se rastejando, as prioridades mudam, meu benzinho. Você o achará na estante mais escondida daquele lugar. – Brinquei.

– Até o próximo lançamento – ela disse de onde estava.

– Ih, vai demorar, viu.

– Achei que estivesse preparando algo, já que passou tanto tempo incomunicável.

– Eram outras questões – eu chamei a atenção dela ao falar apontando para a minha própria cabeça, dando a entender que eu falava de transtornos mentais.

Ela riu e depois saímos por uma caminhada para fora do palco. Eu disse que tinha adorado o lugar escolhido e ela confessou que o achou completamente por acaso. Conversamos sobre outras coisas, como a escolha do elenco e da produção, a trabalheira que foi montar tudo, captar o pouco recurso que conseguiu e fazer todo mundo entender seu ritmo de trabalho.

– Nossa, que pessoa difícil é você – eu a respondi em ironia.

– Eles já se estressaram algumas vezes. – Ela disse apontando para o palco não tão distante de nós naquele momento. – Mas você está bem mesmo, né?

– É claro que sim – menti, sentimento imediatamente o peso daquela mentira. – Quer dizer, não tão bem, mas a gente fica com o tempo.

– Você não acha que já teve tempo demais para resolver isso? – É claro que ela falava de Bernardo e sua partida.

– Há coisas que deixam marcas, e você sabe disso. Mas está mesmo tudo bem. O que não estiver, vai ficar. Só precisamos conversar mais.

– Precisamos. E mesmo não sabendo qual será reação, eu tenho algo para te contar.

– Não me deixe nem mais um segundo sem saber disso. – Explicitei minha ansiedade no meio de um riso amigável enquanto eu encostava em uma das cadeiras.

– É que...

E no exato momento em que ela iniciou sua frase, escutamos um grito vindo do palco. Por estarmos de costas para ele naquele momento, instintivamente já nos viramos correndo pelo corredor de cadeiras. Só percebemos o que tinha acontecido quando chegamos lá: Eric, um dos atores que interpretaria um dos irmãos tinha conseguido a proeza de segurar numa barra de mau jeito e por pouco não despencou andaime abaixo. O grito tinha sido dado por Sarah, a atriz que interpretaria sua irmã na montagem.

Eu não precisei tomar nenhuma iniciativa, pois o resto da equipe já estava ali, pronta para o pior. Ele riu do alto da estrutura tomando seu posto entre as barras.

– Tente não morrer. – Catarina gritou aliviada, mas meio brava com o garoto.

– Por essas e outras que eu jamais subiria até o último nível – Sarah foi falando quando parou ao nosso lado.

– Prudente. – Eu analisei como resposta.

– O que foi? Já estão adorando minha apresentação? – Eric gritou lá de cima, exibido. – Eu não vou cair, só segurei com as pontas dos dedos e perdi a firmeza. Olha só, já peguei o jeito.

– Isso pode custar sua vida. E o pior: em cena. – Catarina novamente alertou o ator.

– Tudo bem, diretora. Tudo bem!

Eric revirava os olhos enquanto falava? Que audácia.

– Ele é novo no teatro – Catarina disse para mim em tom mais reservado. – Para ele tudo é novidade. Esse mundo é excitante demais. Deixa só ele descobrir que as coisas não são sempre assim. Na primeira crítica ele aprende como isso aqui funciona.

– Você contabilizou os riscos?

Catarina me olhou de canto, desacreditada.

– É claro que sim, mas pode apostar que eles vão ensaiar até subir nisso aí de olhos fechados.

– Por favor! – Eu sussurrei como se fizesse uma prece. – Mas não ache que eu esqueci nossa conversa.

– Lembre-me disso depois, Ralph. Agora precisamos ficar de olho neles.

Eu não demorei no teatro e logo me despedi de Catarina deixando o aviso de que precisava saber do assunto que ela tinha começado. Passei o resto do dia entre a TV, a cozinha, o computador e fui pego pelo sono logo que se iniciou a madrugada. Eu não fazia mais o tipo de que lutava contra ele. No primeiro abrir de boca eu já estava enfiado nas cobertas.

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