ACRÔNICO. Parte 8.

Um conto erótico de Ralph.
Categoria: Homossexual
Contém 1179 palavras
Data: 12/04/2017 16:36:39
Assuntos: Gay, Homossexual

– Eu sei o que você quer saber. – Ele disse limpando os lábios com o guardanapo, me arrancando de onde quer que eu estivesse, perdido em algo que naquele momento só eu sabia. Eu me contorci na cadeira ao entender a intenção da pergunta.

– Não é o momento para isso – eu respondi quando pronto.

– Está tudo bem – ele entendeu meu receio. – Falar disso no nosso primeiro encontro depois de tudo que aconteceu não me deixará doente novamente.

Existiu uma pausa silenciosa antes que ele começasse a falar novamente:

– Longe de você eu estava também longe da culpa. Não da culpa de ter ido embora, é claro. Podemos resolver isso depois – ele inspirava confiança. – Eu falo da culpa de ser um fardo, porque esse era um sentimento constante. Eu vivia com medo de ver aquilo tudo acordar em uma manhã ensolarada e transformar sua vida em algo que você não esperava, o que aconteceu de qualquer forma.

Eu suspirei de forma pesada e ele estendeu sua mão sobre a madeira rústica da mesa. Nossos dedos se encontraram em um carinho saudoso.

– Minha mãe, que também temia por sua saúde mental, me recebeu sem questionamentos e o avanço da depressão teve que ser tratado de forma mais intensa. Diferente de quando eu tinha dezessete anos. O resto dessa história pode ser resumido em remédios, terapia, viagens e saudade.

– Saudade. – Eu repeti.

– Essa aí não tem cura, viu? – Refletiu.

– Não? – Perguntei apontando para nossos dedos juntos outra vez. Eles se encaixavam perfeitamente, como sempre foram nossos toques.

– Eu terei que voltar atrás. – Brincou.

– Voltar é algo que muito fala sobre esse momento.

– Facilita aí, escritor. – Ele apertou meus dedos.

– Voltar é o verbo que curará a saudade. Meus braços quase se esqueceram de como é abraçar você, e aqui estamos nós outra vez.

Ele sorriu e eu vi seu rosto corar. Isso nunca tinha acontecido, nem quando ele era apenas um garoto. O novo Bê veio carregado de um renovado estoque de sentimentos, mas ainda era meu, como eu imaginei que sempre fosse ser.

– Então poderemos recomeçar? – Havia sinceridade em sua pergunta.

– Recomeçar? O que sinto por você não sofre a ação do tempo. Recomeçar é para os fracos – eu brinquei outra vez. – Seguimos daqui. É assim que deve ser.

– Eu não tinha dúvidas de que criamos entre nós um sentimento acrônico – ouvi ele concluir e me impressionar do outro da mesa antes de me servir o mais belo dos sorrisos. Aquele que era só meu e que guardava a felicidade genuína, ou em seu estado mais primevo, e que por consequência era ainda mais apaixonante.

– O nosso sentimento acrônico – concordei afundado em felicidade.

Não muito tempo depois eu terminava de pagar a conta do restaurante e ao me virar para conferir a imagem do homem que me acompanhava, não mais o encontrei em pé esperando por mim. Pensei que as luzes baixas poderiam ter escondido Bernardo da minha ânsia e ri sozinho imaginando-o se esconder do meu olhar vigilante, mas vasculhar o espaço ao redor me fez crer que ele não estava ali. Ainda ao alcance dos meus olhos a nossa mesa já estava sendo tirada, então eu corri até o garçom que recolhia tudo sobre ela o fiz parar o que estava fazendo. Ele não entendeu a forma desesperada com que eu vasculhava os pratos e talheres e quase derrubei uma garrafa de Coca-Cola intocada. Ele pediu desculpas como se a culpa fosse sua e levei as mesmas mãos aos olhos, me recusando a acreditar que aquilo estivesse acontecendo novamente.

– Senhor?

– Não... Não... – Eu repeti mantendo os olhos fechados e minhas mãos sobre eles. O breu que eu criava me ajudava a aceitar aquilo.

– Eu não vi razão para os pedidos duplos, mas eu servi mesmo assim...

– São duplos porque tinha alguém comigo – eu interrompi o homem que não mais sorria e me olhava com certo temor nos olhos. – Tinha alguém do outro lado da mesa.

Ele se manteve quieto e em silêncio e eu senti minha visão embaçar quando meus olhos se emudeceram e as lágrimas se desprenderem dali, escorrendo minha bochecha quente.

– Eu sei que ele estava aqui – sussurrei no meio daquele choro engolido e silencioso.

– Senhor – ele tocava meu ombro. – Desculpe se essa não é a melhor resposta, mas você esteve sentado sozinho durante toda a noite.

É claro que eu não precisava aceitar o que ele tinha para dizer, mas teria que acreditar no prato intacto do outro lado, nos talheres ainda posicionados esperando para serem usados e o guardanapo perfeitamente dobrado ao lado.

– Eu sinto muito, mas servi o que você o senhor pediu. – Ele ainda achava que minha contestação tinha relação com os pedidos servidos.

– Está tudo bem – eu murmurei sem olhar diretamente no rosto dele. – Não é sua culpa. Eu é que ando meio esquecido mesmo. Achei que alguém chegaria de surpresa... – Me calei ao perceber que seria ainda pior tentar explicar tudo aquilo e forcei um sorriso entre a fala. – Fique tranquilo, está tudo bem. – Disse como quem repetia um mantra.

Eu o deixei sozinho na mesa e me virei tirando a nota fiscal que enfiara no bolso sem verificar o preço. Somente os pedidos que eu tinha consumido foram cobrados e ver o gerente que eu já conhecia caminhar penoso em minha direção me fez entender que ele pretendia esclarecer tudo isso. Ele parou quando me alcançou, mas eu continuei andando em passos apressados na direção da saída. Era impossível que algo decente ou dotado de sentido saísse de minha boca.

A chuva fina que caía do lado de fora se juntou às lágrimas que jorravam livres dos meus olhos e molharam meu rosto imediatamente. Eu soquei o ar uma série incontável de vezes antes de desistir de tentar penalizar alguém invisível pelo que tinha acontecido e desabei em soluços.

Escrever e trabalhar com a criatividade me deu a liberdade de criar tudo que eu quisesse com a frequência que julgasse necessária, mas a solidão que era na maioria das vezes massacrante e os sentimentos não resolvidos me trouxeram transtornos mentais capazes de causar confusões quase incorrigíveis. Com frequência eu criava em minha mente a situação que deveria estar se desenrolando naquele momento, e de tão convincente, eu embarcava nela com total entrega. Responder o chamado imaginário daquele que me persegue todos os dias da minha vida, em todos os momentos, e sentar numa mesa para em seguida pedir algo para dois, era a prova do perigo que tinham se tornado essas projeções mentais.

Bernardo é o fantasma que me enlouqueceu ao me deixar sozinho, quando eu precisava de sua companhia tanto quanto ele precisava de mim. Mesmo insistindo em mantê-lo vivo dentro de mim, eu sabia que seu retorno poderia ser algo possível apenas dentro da minha cabeça, em minhas irrealidades. Até certo nível era bom projetá-lo em meus dias, mas aquilo precisaria ter um fim antes que eu não conseguisse mais diferenciar a realidade da fantasia. Eu nem sabia se de fato estávamos vivos.

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Comentários

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Surpreendente! Será que há um pouco de esquizofrenia no protagonista? Mas a "realidade imaginária" foi tão vívida! Um abraço carinhoso,

Plutão

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