ACRÔNICO. Parte 7.

Um conto erótico de Ralph.
Categoria: Homossexual
Contém 2630 palavras
Data: 10/04/2017 14:39:33
Assuntos: Gay, Homossexual

Nossos pratos chegaram ao exato momento em que sentamos. Atacamos as cores convidativas da refeição entre olhares e suspiros que diziam o quão delicioso aquilo estava. E estava mesmo. Além do sabor da própria comida, tinha o sabor do momento. Mas estar com Bernardo nem sempre fora como desfrutar um prato preferido.

*

2002. Inverno.

Quando terminei o ano escolar, me afundei em referências e estudos para o nascimento do meu primeiro livro. O meu preferido. Descaradamente me inspirei em Bernardo para isso e ele ria, alertando-me para pensar em outra pessoa ao criar meus personagens, porque ele passava longe de representar o interesse de possíveis leitores. Eu nunca me importei com as implicâncias, porque até elas eram o que eu precisava naquele momento.

No meu universo criado, Bernardo era um garoto que se comunicava com outros jovens do mundo através de cartas. O livro era recheado de referências ao momento que vivíamos, mas também falava de um tempo que atravessaríamos. O dos avanços modernos, descobertas comportamentais e culturais. Não era nada genial, mas as pessoas para quem eu o mandei acharam interessante.

Com a ajuda do meu pai ele foi enviado para uma pequena editora e não demorei a vê-lo lançado, no segundo semestre de 2002, atingindo um número expressivo de vendagens.

– Eu me retrato agora ou espero você virar um fenômeno mundial? – Bê me perguntou enquanto abraçava minhas coxas, enfiando seu rosto entre elas e inalando meu cheiro matinal.

Estávamos escondidos em meu quarto e cochichávamos para não chamar atenção, mesmo que meus pais já desconfiassem do que estivesse rolando algo entre eu e Bernardo. Diante da pergunta, eu explorei o rosto que não mudava nada ao passar dos anos e depois enfiei meus dedos pelos cabelos que continuavam iguais e sempre tão cheirosos.

– É claro que não há essa necessidade. Principalmente porque todas as suas implicâncias estão lá, mas em outras palavras. Aliás, acho que nem deveria falar esse tipo de coisa. Logo mais estarei sendo cobrado.

– É mesmo? – Ele fingia desacreditar enquanto escalava meu corpo, alcançando meu rosto ao deitar sobre mim. – Talvez eu devesse mesmo cobrar por esse roubo e colocar você em uma enrascada.

– Me cobre tudo. – Minhas mãos estavam espalmadas sobre as nádegas nuas. – Pode cobrar tudo que é seu por direito. – Eu continuei explorando-o como se aquela ainda fosse minha primeira vez.

– Tudo bem se eu fizer isso agora? – Ele me provocava ao seu modo. Não havia obscenidade quando isso fazia. O tesão estava no amor que compartilhávamos.

– Estou quase implorando por isso.

Nosso riso sincronizado foi seguido por um beijo roubado que tinha gosto de clemência e o amor que fizemos foi lento, como é o próprio amanhecer.

No ano seguinte, aos 24, eu aluguei meu primeiro apartamento com o dinheiro que foi dando as caras com a circulação do meu livro. A parte mais dolorosa foi falar para os meus pais que eu não viveria para sempre protegido por suas asas. Minha aula sobre independência foi tão extensa que no final eles concordaram, sorridentes, que até seria legal ter para onde fugir quando quisessem tempo um do outro. Por outro lado, a felicidade estava em compartilhar isso com Bernardo.

– Você tem a chave do apartamento do seu amigo? – Ele estava desconfiado. Até um passo para longe de mim tinha dado.

– Sabe como é, né? Essa nova era pede relações mais íntimas, então eu tenho total liberdade.

– Liberdade, Ralph? Isso não faz o mínimo sentido para mim.

Era divertido vê-lo reagir daquela forma, especialmente porque ele quase nunca reagia a nada. Era sempre morno, mas sincero.

– Está tudo bem – eu disse girando a maçaneta. – Somos só amigos íntimos. Nada demais!

Ele ficou parado quando entrei e só entrou quando desconfiou do meu sorriso. Eu sempre me entregava. É claro que ele também tinha visto a sala vazia e isso terminou de derrubar minha mentira. Dentro do apartamento ele analisou todos os cantos da sala vazia, fazendo o som de seus passos ecoarem pelo ambiente.

Ele admirava a vista para o mar que tínhamos através das janelas quando eu o agarrei por trás, colando meu corpo no dele, minha boca em seu pescoço quente e minhas mãos em sua barriga macia.

– Essa foi a única vez que você conseguiu me surpreender, de verdade.

– Você se faz de durão sempre, que eu sei. Já estou acostumado.

Ele mesmo girou seu corpo e me encontrou sorrindo. Seus dedos pequenos desciam pela lateral do meu rosto e os olhos brilhantes, mas tristes, me diziam coisas bonitas.

– Você precisava de um espaço só seu.

– Eu preciso é de você. O espaço importa tanto que eu moraria até embaixo de uma ponte. Aposto que ainda me sentiria quente em cima de um papelão velho, só porque teria suas costelas para enfiar minha cara ao dormir.

– Como você fala besteiras – ele revirou os olhos antes de me entregar um beijo calmo. – Mas eu te amo. E amo também suas besteiras.

– Eu vou amar suas coisas espalhadas pelos cômodos e até os cabelos que se desprendem dos outros e, vadios, passearão pela casa. – Eu dei uma pausa apenas para cheirar a bochecha dele. – Isso aqui é nosso e de tudo que é nosso.

– Escritores nos ferram inteiro – ele murmurou de olhos fechados, sentindo meus lábios correrem a região abaixo dos olhos. – Agora me come no chão da sala, porque eu sempre quis isso.

– No chão da sala, no quarto, no banheiro. Nas escadas!

– No corredor! – Ele bradou, excitado.

Entre risos, sussurros, gemidos e pernas entrelaçadas, transamos sobre o chão gelado de nossa casa vazia. Eu perdi a conta de quantas vezes entrei nele naquela tarde e de quantas vezes eu fiz ele se contorcer, sentindo a dor e o prazer que era ser invadido, fundo e apaixonadamente.

As vendagens que continuaram aumentando, trouxeram-me o pedido de outro livro. A editora estava feliz por ter apostado em alguém tão jovem, como eles sempre deixavam claro, e constantemente eu era enviado para algum evento como parte da divulgação daquilo que lançaram. Bernardo preferia ficar longe desses eventos sob as desculpas de que “ambiente com muita gente me deixa enjoado”, mas vez ou outra eu conseguia arrastá-lo.

A confraternização do fim do ano de 2005 foi feita no hall de entrada de um importante museu. A noite se mostrava agradável, nós estávamos bem vestidos, felizes e animados com o ano que se aproximava. Eu vasculhei o ambiente ao redor com meu olhar e não encontrei Bernardo. É claro que ele sobreviveria sem mim, mas eu gostava de tê-lo por perto. Bem perto.

O encontrei em uma das salas, admirando uma das instalações artísticas presentes ali. Era uma estrutura gigante com muitos espelhos dispostos no meio da sala. Ao caminhar entre eles víamos nossos reflexos deformados e às vezes misturando-se aos outros reflexos. Aquilo me causava uma confusão mental, mas Bernardo via sentido naquilo tudo.

Tomando o cuidado de não esbarrar nas finas paredes daquela coisa construída, eu me aproximei e pousei meu queixo sobre seu ombro, admirando suas formas que tomavam contornos mais masculinos aos 24. Eu emoldurei sua cintura com minhas mãos, mesmo segurando entre os dedos uma taça vazia, e beijei o pescoço dele depois de afastar os cabelos para o lado.

– Pelo que eu te conheço, já passou da sua hora. Você está mais triste do que parece ser.

– Eu queria conseguir disfarçar melhor. – Saiu como pedido de desculpas.

– E é exatamente isso que eu adoro em você.

– Fique, se quiser. Você sabe que não somos grudentos como os outros casais. – Ele mantinha as mãos sobre as minhas. Admirávamos nossos reflexos misturando-se em uma confusão nauseante.

– Vamos sumir daqui juntos – eu provoquei o riso dele com um cheiro no queixo liso. – Quer sair de fininho?

– Qual a nossa idade mesmo? – Ele riu quando eu o arrastei para fora da instalação.

– Eu escrevo e você vive em outra realidade. Podemos ser quem quisermos ser. E não ouse me contestar, teimoso.

Mais educado do que os personagens que eu tinha proposto, passamos por algumas pessoas nos despedindo rapidamente e embarcamos de volta ao nosso apartamento. O único lugar onde eu via Bernardo parecer em paz. Pelo menos até aquele momento.

Os dias passavam correndo por nós naquela época. Eu me culpava quando perdia tempo demais enfiado com a cara num computador velho e Bernardo se ancorava em mim, às vezes em meu colo, às vezes sobre meus ombros. E ele só precisava de um único toque para que tudo pudesse ser negociado. Até o meu ritmo de produção.

Eu não vi as horas passarem e ignorei os sinais quando achei que aquilo era coisa da minha cabeça, mas a maré subiu.

Com o tempo Bernardo diminuiu sua coleção de palavras e tornou-se cada vez mais silencioso. Não evitava conversar comigo, mas conseguia driblar minhas investidas e mais escutava do que falava. Os dias não eram mais diferentes das noites e muitas vezes o encontrei dormindo pela tarde, sem ao menos imaginar que tinha amanhecido há horas. Não brigávamos e muito menos discutíamos, e eu quis até que isso acontecesse, só para provar que ele ainda estava vivo e sentia algo por mim. O toque, do tesão, virou acalanto. Ele se agarrava em mim como um filho no colo do pai quando sente medo do mundo. Por horas eu era obrigado a sentar do outro lado da porta de algum cômodo enquanto ele dizia que precisava ficar só. Por mais que eu procurasse saber, não conseguia entender o motivo daquilo.

– Então essa é a maré que você previa?

Eu estava sentado no chão e sentia que do outro lado da porta ele também estava. Eu conseguia sentir seu corpo através da madeira fina.

– Eu tentei nos proteger dela, Ralph, mas é algo que eu não consigo manter numa distância segura. Isso me abraça e imobiliza meus pés. Trava minha língua e meus sentimentos.

Sua voz pesava mesmo quando saía sussurrada e isso doía em mim.

– Saberemos como lidar com isso. Eu te ajudo, você me orienta e nós ficaremos bem. Nós sempre ficaremos no final.

– Não, Ralph. – Ele sussurrou outra vez. – Não quero nos desgastar com isso. Eu sempre soube que em algum momento essa velha amiga tomaria minha mão e me levaria por um caminho particular. Eu preciso trilhar isso sozinho. Se não sozinho, ao menos longe de você.

– Ninguém disse isso. Você não precisa estar longe de mim. Eu sei o que é depressão e conheço os convidados que chegam com ela. Esta é uma festa que ninguém participar, mas nós podemos dar um jeito nisso.

– Não fale como se fosse algo físico. – Sua voz fraca quase foi cortada por um choro desavisado. – Não é algo que eu possa jogar no lixo e ver desaparecer nos fundos de um caminhão.

– Eu dou importância ao que você sente. Entenda isso e entenda também que eu só quero estar com você.

– Quando nem eu mesmo quero estar em mim... – Disse-me outra vez sendo interrompido por lágrimas que deviam rolar pelo rosto.

– Bê, me deixa entrar. Por favor!

A porta foi destrancada e quando me espremi pela pequena passagem que me foi dada, encontrei Bernardo sentado no chão, como eu sabia que estava. Os joelhos levantados, seguro pelos braços dele e as coxas pressionadas contra o peito. Ele parecia tentar se proteger do mundo inteiro ao redor, mas o problema, como ele sempre dizia, vinha de dentro. Eu não pensei uma única vez antes de me sentar com ele. Abracei o corpo mais magro do que o normal e fiz as costas dele grudarem em meu peito. Ele ainda tinha o mesmo cheiro que eu adorava, mas era outro. Talvez fosse um Bernardo que eu sequer tinha conhecido. Talvez um Bernardo que foi intimidado pela minha presença e se manteve distante enquanto tudo era novo e bom demais. Mas velhas tormentas sempre ressurgem.

Eu entendi naquele instante, tomando o corpo trêmulo em minhas mãos, que as muitas versões do garoto que eu amava faziam com que ele experimentasse os mais variados sentimentos. A depressão era a maré avisada e ele estava certo quando dizia que eu não saberia lidar com isso.

Eu continuei ali até ele adormecer em meus braços e o levei para a cama. Dormimos tão juntos, que cheguei a pensar que naquela noite enfim nos tornaríamos um só. Talvez isso afastasse os demônios internos que atormentavam meu menino de olhos tristes, mas brilhantes. Os dias seguiram iguais e tão mais escuros. Eu dei toda minha atenção e propus procurar algum tratamento, mas ele evitou qualquer ajuda e se enfiou atrás de uma casca de negação. Eu chorei diversas vezes em seu colo, assim como foram incontáveis as vezes em que ele chorou para mim.

Eu estava lá quando ele teve uma crise e vomitou toda a comida que eu tinha preparado. Eu estava lá quando, no meio de outra crise, ele não conseguiu respirar e se arrastou pela cama em minha direção, tomando o lençol entre seus dedos finos como se a dor que sentia por dentro pudesse passar com a aplicação da força. Eu estive lá quando ele olhou através da janela, perdido, e lamentou ser tão humano e tão fraco, e ironicamente ele estava em meus braços quando eu me senti o mais impotentes dos homens.

*

Eu tive que inspirar com força. Eu não conseguia engolir a salada que descia rasgando minha garganta apertada. Era difícil pensar em todo o sofrimento que passou o homem à minha frente. Quando ele me olhava e sorria apertando os olhos, eu quase conseguia esquecer que por pouco não segurei seu corpo sem vida em meus braços.

Atravessávamos o outono de 2006. Bernardo ainda evitava qualquer tipo de tratamento, por mais que parecesse ser algo que pudesse lhe fazer bem e sua piora era tão notável quanto meu desgaste. Nossas brigas aconteceram todas as vezes que eu tentei dizer que avisaria a família dele sobre sua situação. Meu livro estava atrasado e nós estávamos cansados.

Ele partiu quando eu aproveitei as horas calmas de uma manhã para tirar uma soneca que se transformou em um sono pesado. Ele partiu e levou consigo apenas as dores e angústias. Não houve despedida, nem olhos vermelhos de chorar. Não houve um abraço apertado nem o olhar de adeus. Não houve um último carinho, ou último beijo.

O vazio insuportável deixado por ele me consumiu por muito tempo. Dolorosos anos. Eu não o procurei, pois sabia que ele tinha voltado para casa, que talvez fosse o único lugar onde ele acharia a cura. É claro que eu vivi o luto emocional, mas entendi, por fim, que o amor não tinha acabado. Não era essa a questão da partida. Ele ainda me amava e tudo em mim sabia disso. Eu ainda o amava e ele também era ciente disso.

Sua partida me fez entender e aceitar que nem sempre podemos resolver tudo. Ou que o amor ocupa todos os espaços vazios. Eu deixei a distância existir entre nós dois, pois no meu âmago eu sabia que ele seria para sempre meu.

.

.

Nota: entendo que esse assunto pode ser um disparador de gatilhos, mesmo se não abordado com profundidade. A depressão aparece em meu conto como parte dele e não base principal. Se a doença fosse o grande assunto, não sei se conseguiria terminar, pois já comecei alguns contos sobre ela e parei nos primeiros capítulos.

Um pedido: estudem, entendam, seja compreensivos e tentem entender aos pessoas ao redor. Nós não sabemos o que elas carregam.

Um chamego: não sinta-se culpado se não puder ajudar alguém. Há casos e casos. O primeiro grande passo que pode mudar muita coisa é dar apoio emocional e não menosprezar aquilo que sentem.

Outra coisa: estou no Wattpad também, viu? Vocês me acham procurando pelo @euesse.

Todos aqueles abraços do mundo pra vocês. :)

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