Como o Diabo Gosta [1/2]

Um conto erótico de Fauno
Categoria: Heterossexual
Contém 1800 palavras
Data: 06/12/2016 22:37:28
Última revisão: 27/12/2016 16:30:45
Assuntos: Heterossexual

Era opressivo, sufocante; não tanto pelo mormaço daquela tarde abafada de verão, mas pela incredulidade das dezenas de pares de olhos masculinos que haviam se voltado para vê-la adentrar desacompanhada a biblioteca. Pior que isto, porém, era a dúvida que a impelira até ali.

“O Homem Vitruviano?” Esperanza pediu ao bibliotecário num sussurro trêmulo, como se perguntasse pelo Kama Sutra.

Murmúrios por toda parte, mas o homem não levou mais de alguns minutos para trazer um pesado livro de arte renascentista. Dispensando o assento que ele sinalizava, ela apoiou a encadernação no antebraço e folheou até o famoso estudo em forma de pentagrama, visão que fez seus olhos se fecharem e sua mão subir à testa.

“Posso ajudar, senhorita?” o funcionário perguntou, tirando-lhe suavemente o livro antes que ela o deixasse cair. “Aceitas um copo d‘água?”

“Obrigada, mas preciso sair agora mesmo. Tenho quinze minutos para voltar de carona à fazenda de Juarez.”

A declaração provocou troca de olhares surpresos e receosos, como se ela houvesse dito ‘castelo de Vlad Tepes’. Não que a propriedade em si tivesse ares de histórias de sangue e morte; construída em pau a pique, a sede de paredes brancas e janelas azuis contava com quatro salas, quase uma dezena de quartos e um banheiro mais que suficiente para seu único morador, órfão de ambos os pais e da irmã mais velha, que sucumbira havia dois anos no parto do primeiro filho. Ele próprio nunca se casara; solteiro convicto aos 34 anos, era conhecido por se interessar mais pelas esposas alheias, peculiaridade que levara um grupo de maridos de mulheres seduzidas e/ou molestadas por ele a procurar a Justiça. Não fossem os apelos da Igreja por uma tentativa de exorcismo, àquela altura decerto estaria numa prisão ou manicômio. Coubera à jovem Esperanza a tarefa de registrar o processo, a contragosto da maioria conservadora da cidadezinha, que apenas tolerava a decisão pela falta de pintores ou desenhistas do sexo masculino entre seus habitantes ou das vizinhanças.

“Então és a artista? Não imaginava moça tão nova.” O funcionário ergueu as sobrancelhas. “Bem, espero que tenhas a felicidade de registrar um ritual bem-sucedido. Se eu algum dia encontrasse aquele homem por aqui, enfiaria-o na estante de Medicina. Dizem que é um catálogo de doenças venéreas.”

Aquilo lhe trouxe um déjà vu. A descrição batia quase ipsis litteris com a que fizera Yolanda, a criada da fazenda, quando da chegada de Esperanza à sede, cerca de meia hora atrás.

“Um poço de doenças. Flerta com qualquer mulher, frequenta casas de tolerância e tudo indica que seja dado a orgias, além de blasfemar como o capeta”, a senhora de meia-idade e aparência circunspecta advertiu antes de conduzi-la ao quarto onde ele esperava.

“Há quanto tempo isto vem acontecendo?” A jovem a olhou sem seriedade, mal disfarçando sua relutância em aceitar a noção de que naquela casa de ar tão tradicional morava um demônio. Talvez distúrbio mental, talvez desvio de caráter, mas possessão? Quando isto acontecera de fato?

“Ele contava cerca de doze anos quando começaram os sintomas: palavrões, obscenidades, desleixo, lapsos de memória, mentiras, mudanças súbitas no timbre da voz, agitação, agressividade. O garoto teimava em mandar nos empregados e até na própria mãe. Várias vezes por semana, os lençóis amanheciam sujos de... Hum, o padre deve chegar em mais ou menos uma hora. Podes adiantar teu trabalho enquanto isto. Vem, levo-te ao quarto. Não temas. Está contido.”

Assim passaram à ante-sala dos dois quartos a oeste, mobiliada por duas grandes poltronas de tecido marrom-escuro, uma escarradeira de louça rachada, uma escrivaninha de porta de esteira retrátil e uma cadeira de escritório. Sempre à frente, Yolanda abriu a porta do quarto esquerdo, onde se via, nu da cintura para cima, preso à cabeceira da cama pelos pulsos amarrados, um homem de estatura mediana com o comovente rosto de um São Sebastião inconsciente, cujos olhos negros se abriram para a criada e a visitante ao ranger da porta de carvalho.

“Este é Juarez”, Yolanda disse sombriamente.

“Boa tarde, Juarez”, Esperanza cumprimentou em tom cordial. “Bela propriedade, esta tua.”

“Imponente, não? A sede tem oito quartos. Foi construída por escravos”, Juarez informou com inesperada compostura; sorriu e de novo abriu a boca, sendo interrompido por três sonoras batidas de aldrava na entrada social.

“Deve ser o padre. Chegou cedo.” Yolanda deu um passo vacilante, como se dividida entre a porta e a visitante.

“Tudo bem. Podes ir, Yolanda.” Esperanza deu-lhe um sorriso tranquilizador, indo sentar-se na cadeira ao lado da cama. Com recato infantil, como se não estivesse ali para registrar tudo quanto possível, desviou o olhar para o pomar de laranjeiras, só para descobrir Juarez fitando-a pelo reflexo na porta espelhada do armário ao lado da janela. Mal Yolanda sumiu na ante-sala, o homem abriu um sorriso mais malicioso que afável e baixou a voz para um sussurro.

“Aliás, Yolanda te contou sobre os fantasmas de escravos que assombram a adega? Era originalmente uma masmorra, sabes?” Cravou-lhe um olhar agudo, retribuído com outro acuado. “Que houve, anjo?” forçou intimidade. “Assustei-te? Oh, não foi por mal... Permite-me que eu me redima de minha falta de tato; deita aqui que te protejo. Nada a temer comigo a teu lado...”

“Ninguém na porta.” Era a voz de Yolanda crescendo na ante-sala. Quando entrou no quarto, Juarez olhava o teto e Esperanza amassava o bloco de desenho fechado no colo. “Podes trabalhar em paz, senhorita. Não voltarei antes da chegada do padre, ou até que me chames.”

Ainda em silêncio, Esperanza assentiu, abriu o bloco e tirou do estojo uma borracha e um lápis marrom-escuro. Podia sentir Juarez observá-la traçar as primeiras linhas, concentrado em seu silêncio aparentemente respeitoso. Quando ele falou, foi em tom sério. “Ocupação incomum para mulheres, esta de desenhista. Gostas dos desenhos de Da Vinci?”

“Sim, muito”, ela respondeu sem se deter.

“Notaste o quinto membro do Homem Vitruviano em mais de uma posição?”

Isto sim a fez parar com o lápis a milímetros do caderno. Nunca ouvira ou muito menos notara aquilo. Por menos supersticiosa que fosse, por um momento pensou se tratar de mais uma mentira do demônio. Até por falta de palavras, achou por bem dar a Juarez novo silêncio, que ele não tardou a quebrar:

“Como me apertam estas calças. Acho que a comida gordurosa daquela velha idiota anda me engordando.” A queixa fez Esperanza lançar um olhar medroso sobre o corpo estendido na cama, esguio e aparentemente confortável dentro das calças bem ajustadas. “Importas-te de abrir apenas o primeiro botão? Não estivessem minhas mãos atadas...” O tom agora era o de um esfomeado mendigando maravedis. Entre compadecida e desconfiada, ela se aproximou não mais que o suficiente para atender o pedido, imediatamente recuando um passo à visão do volume roliço que assomava do centro à direita da virilha. “E agora isto, como se não bastasse. Estou mortificado.” Fitou o chão, apenas para voltar-lhe o olhar suplicante. “Assim aperta. Se pudesses abrir os outros dois botões...” Suas feições se contraíram numa careta. “Tem piedade de meu sofrimento. Sendo mulher, não calculas quão incômodo isto é. Dói de verdade, e não faço por mal. É difícil manter a compostura com tão bela moça ao lado de minha cama.”

Ela titubeou por alguns segundos antes de abrir com as pontas dos dedos os dois botões restantes, revelando ceroulas bege-claras de odor rançoso maculadas por um círculo na extremidade do volume que tal qual inflamação inchava e arroxeava, como se prestes a irromper secreção purulenta.

“Quantos anos tens? 20, 21?”

“19”, respondeu aérea, sentindo a visão turvar.

“Pela idade, imagino que nunca tenhas conhecido um homem. Não tens curiosidade em ver?"

Como se escutasse o contrário, ela tornou a ocupar a cadeira e desviar o olhar para a janela. Desta vez não o deixou cair para o espelho, mas pôde sentir um peso pairando sobre si.

Os olhos. Aqueles olhos negros que penetravam sem licença ou pudor.

"Além disto, neste estado também o elástico me aperta terrivelmente", ele continuava em tom melodioso, entoando as palavras feito um cântico perverso. "Faz-me esta boa ação, sim?”

E então, sem saber como ou por quê, como se comandada por força externa, a jovem se via a um passo da cama. Incapaz de tirar os olhos do corpo estendido ali, fez o que ele pedia, mas depois piscou e recuou de súbito, esfregando as mãos com o asco de quem se livra de um pano de chão enlameado. A intimidade de Juarez agora se expunha pela metade, para o espanto de Esperanza, que nunca antes vira um homem sequer se despir, muito menos se oferecer com tamanho despudor.

“Se quiseres tocar, eu deixo. Vem, pega. Para sentir como é.” De novo aquela estranha melodia, tão lúgubre quanto sedutora. Antes que pudesse se deter, ela fechava as pontas dos dedos em torno da extremidade rombuda, intrigada com a fina e frouxa pele que deslizava sob o mais leve toque. “Mãozinha fria. Hum, assim é mais gostoso.” Ele deixou a boca entreaberta e os olhos semicerrados, sem contudo desviá-los de Esperanza; subiu, desceu e subiu os quadris de forma a friccionar a glande contra o prepúcio fixo entre os dedos estáticos, desvelando a curva rutilante com o poço de líquido incolor. “Vês esta água? Não é insípida como a que conheces. Pelo contrário, é muito saborosa. Queres experimentar?”

De inopino, a serpente deu o bote; saltou da mão de Esperanza, caiu apontada para ela e se remexeu, dilatando e contraindo o orifício com vigor suficiente para verter a peçonha viscosa. Com um grito abafado, a moça recuou até o pé da cama, onde jazia embolado o lençol fedido a suor seco e um odor que lembrava águas sulfurosas; apressadamente puxou de volta as ceroulas e jogou o lençol sobre o homem antes de deixar o quarto, como se tivesse por obrigação poupar os olhos alheios daquela cena que a fizera duvidar de si mesma. Quase aos tropeços, precipitou-se pela ante-sala e foi procurar Yolanda na copa.

“Tudo bem?” perguntou a criada, levantando o olhar da tábua de passar roupa.

Esperanza mordeu os lábios. Então seu nervosismo transparecera? Ou talvez Yolanda apenas não esperasse vê-la ali tão cedo? “Sim, tudo. É só que eu... temo não... Ele... Ele me faz sentir coisas.”

“Claro que faz. És humana.” Yolanda esticou a manga da camisa na tábua e retomou o ferro a carvão.

“Disseste que o padre ainda tarda. Pergunto-me se poderia me ausentar por alguns minutos.”

“Quantos?” Yolanda olhou o relógio na cristaleira.

“Meia hora. Quarenta minutos, no máximo.”

“Acredito que não. Se ele chegar, pedirei que aguarde.”

A solução para sua dúvida ficava no centro da cidade. Em menos de vinte minutos, Esperanza se via na modesta biblioteca municipal, o Homem Vitruviano ereto em suas mãos. O demônio contava mentiras, mas aquilo era algo diferente.

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