Amor de Carnaval não Vinga (26)

Um conto erótico de Peu_Lu
Categoria: Homossexual
Contém 4854 palavras
Data: 18/07/2016 00:37:45
Última revisão: 18/07/2016 00:41:42

"Quanto mais eu me vejo em você, mais eu guardo em segredo, a vontade de dizer, que é maior o que há em meu coração..." (Beijos de Hortelã, Ivete Sangalo).

+++++

- Calma, respire – tentava tranquiliza-la.

O pranto não cessava. Enlacei o seu ombro e comecei a conduzi-la para o sofá. Saí rapidamente para pegar um copo d’água e pedi que bebesse um pouco, ato que ela realizou com as mãos trêmulas, tamanho desespero instaurado no corpo.

“Adriano saberá ser um pouco paciente...”, agachei-me à sua frente, apoiando-me nos seus joelhos:

- O que aconteceu? – indaguei já conhecendo os pormenores da resposta.

- Eu e Marquinhos... Nós – soluçava para tentar formular uma frase coerente – A gente já tava tentando ter um filho há alguns meses. Transamos regularmente, e a natureza não fazia a sua parte. Aí tive a ideia de procurar um médico, saber o que era, buscar um tratamento, sei lá.

Juliana apertava os meus dedos com força, e eu escutava tudo com um grande pesar.

- Ele pediu para nós dois fazermos exames e estudarmos as possibilidades juntos. Hoje à noite encontrei o resultado lá em casa, e descobri que Marcos estava escondendo de mim...

Seus olhos voltaram a se inundar:

- O problema sou eu... Sabia que era...

- Não fala assim. O que o diagnóstico dizia?

- Não sei, não conseguia entender aquela papelada. Quando o chamei para explicar, ele ficou agoniado, sem saber o que fazer. Disse que precisávamos conversar, mas não tinha a mínima capacidade para assimilar nada. Preferi sair para espairecer...

- É melhor avisar que você está aqui.

- Não! Ele vai aparecer para me buscar. Impossível ter qualquer tipo de diálogo agora.

- Ju, não é bem assim.

- Eu tenho certeza que vamos terminar... – tentava limpar as lágrimas com o punho.

- Você não tá raciocinando o que está dizendo.

- Formar uma família completa é a lógica de todo casamento, e eu não serei capaz disso...

- Para, não fala mais nada... – interrompi antes que aquilo piorasse e peguei um leve impulso para me levantar outra vez – Só preste atenção, pode ser?

O choro tinha dado uma trégua, e aproveitei a deixa para esclarecer algumas coisas:

- Vamos por partes, ok? O Marquinhos me procurou na quinta-feira para falar sobre isso.

Repentinamente, ela focou o olhar no que eu dizia, bastante séria:

- Você sabia?

- Sim. Ele estava desesperado, angustiado e precisava desabafar. Não pra terminar, nem todas essas maluquices que está pensando, mas porque estava com medo de como iria enfrentar.

- Já tem quase cinco dias que sabia disso e não me contou nada?

- Foi um pedido dele, não poderia negar.

- Que tipo de amigo é esse? – ela se levantou também, inquieta.

- Juliana, eu não terminei – tentei conter a irritação – Sabemos que não é uma notícia fácil. Seu marido está tão arrasado quanto você. O desejo dele também era poder realizar esse sonho, e ele estava sentindo o peso da responsabilidade de te falar isso.

- Vocês pretendiam esconder isso de mim pelo resto da vida, é isso? Que plano genial! – não disfarçou a ironia gratuita.

- Não. Disse a ele que era melhor amadurecer os fatos e, com calma, encontrar uma maneira de te avisar.

- Como esperava que eu correspondesse? Saltitando de alegria? – ela já estava visivelmente transtornada.

- Não disse isso, pare de tentar me atacar – tentava manter a paciência – Você está reagindo como qualquer ser humano normal. A questão é que estaríamos mais preparados para te ajudar no que fosse preciso.

- Que belo consolo...

Ela começou a me aplaudir, e o descontrole foi a gota d’agua:

- Chega! Não faça parecer que estou tentando minimizar ou ridicularizar os fatos. É triste, estamos todos arrasados, mas sempre fomos unidos e podemos passar por isso, juntos. Nada é definitivo! Vocês podem contratar uma barriga de aluguel, fazer inseminação artificial, adotar uma criança...

- Adotar? Você nunca vai entender o que estou sentindo. Nunca! – ela teve um rompante de fúria – Não poderei sentir que algo foi gerado dentro de mim, nem terei a chance de acompanhar cada etapa dessa experiência. Nascimento, primeiros passos, crescimento? Nada! Nunca serei uma mãe completa e isso não é justo! – Juliana praticamente gritava.

- Você está me ofendendo... – respirava fundo para abstrair a onda de lamentos primitivos e carregados de preconceito.

- Eu me preparei a vida toda para isso e... – ela parou e praticamente congelou, com a boca entreaberta.

Estranhei a mudez abrupta e encarei o seu rosto, que mirava um ponto fixo da sala. Virei-me rapidamente e percebi que Adriano tentava passar despercebido rumo à saída do apartamento.

- O que está acontecendo aqui? – ela ficou intrigada com uma terceira presença.

“Droga!”, não consegui esconder a censura com o olhar.

- É melhor eu ir embora... – ele alcançou a maçaneta correndo.

- Espera! – bradei tentando alcança-lo.

O visitante dispensou o elevador e disparou em direção às escadas.

- Adriano, espera! – tentei me fazer ouvir novamente, em vão.

Ele já estava fora do meu campo de visão. “Seu burro!”, queria me punir de todas as formas possíveis, e não consegui conter um murro na parede. “Calma, termine de resolver um problema e depois parta para o outro. Daqui a pouco você telefona para ele...”, retornei consternado para o hall de entrada e encontrei minha sócia arrumando suas coisas:

- Não foi uma boa ideia ter vindo. Tome a sua chave, já invadi demais a sua privacidade.

- Eu não pedi de volta, guarde para quando precisar.

- Acho melhor voltar pra casa.

- Você não vai a lugar nenhum. Vai descansar aqui e se acalmar...

- Não precisa Augusto, você deve ter coisas mais importantes para fazer...

- Cala a boca! – gritei – Já vomitou tudo o que tinha para falar, já chorou o que podia... Chega! Agora larga essa bolsa aí e vamos dormir em paz. Não vou falar, nem dar conselho ou lamuriar mais nada! Teremos uma eternidade para você escutar o que tenho a dizer, tá bom?

Tranquei a porta e me dirigi à cozinha, procurando outro copo para encher de água. Estressado, vasculhei as gavetas do móvel ao lado da mesa, atrás de algum analgésico ou medicamento similar.

- Vem... Toma esse calmante, vai te ajudar a ter um sono mais tranquilo.

Ainda receosa e com o rosto todo borrado, ela tomou a pílula da minha mão. Foquei no que era necessário: ofereci-lhe mais um abraço, seguido de um beijo na testa e seguimos para o andar superior. Entreguei um roupão e pedi que ela tomasse um banho quente demorado. Assim que se ausentou, mandei uma mensagem para Marcos, explicando que a esposa estava bem e que dormiria comigo naquela noite.

Aproveitei o intervalo e me apressei em escrever para Adriano:

- “Desculpa, não queria que a conversa se estendesse tanto. Não sabia do que se tratava e deveria ter avisado que estava acompanhado. Foi por isso que saiu daquela forma?” – indaguei.

Aguardei um pouco para ver se ele responderia, mas não obtive sinal de vida. Juliana saiu do banheiro mais serena, ainda que o rosto transbordasse tristeza:

- E agora? – balbuciou.

- Agora você vai eleger um lado da cama, se esparramar e escolher algo legal pra gente assistir, enquanto eu tomo banho. Vasculha aí o guarda-roupa, deve ter algum moletom que sirva.

Quieta, obedeceu ao pedido. Mudei a temperatura e aproveitei a ducha fria para analisar todos os ocorridos do dia. A profusão de informações em tão pouco tempo não me deixava relaxar. Havia muito a digerir e não queria expor o meu pensamento de uma forma precipitada. Enrolei-me na toalha e voltei ao aposento, onde minha amiga já repousava escondida embaixo do edredom.

- Preciso vestir alguma coisa. Fecha os olhos e me dá trinta segundos – alertei enquanto procurava algum pijama mais comportado, já que sempre ficava mais à vontade quando estava sozinho.

- Até parece que eu nunca vi essa bunda...

- Você é uma senhora casada – vesti uma cueca, ao notar que ela olhava para o outro lado.

- É... Só não sei até quando.

- Olha, foi uma boa tentativa dramática – ajeitei a camisa e me virei, seguindo para o meu espaço demarcado na cama – Mas não vou ficar dando corda para alimentar a sua insegurança, pare de insistir.

- Porque você é assim, hein?

- Amigos de verdade são assim. Pode espernear, falar o que não deve, chorar, brigar... Meu ombro está sempre aqui. Amanhã será outro dia e você vai escutar a bronca que merece.

Ela suspirou, refletindo o que eu disse.

- Mais algum desabafo, dona Juliana? – exibi um meio sorriso.

- Não, senhor.

- Ótimo – organizei as minhas almofadas para me aconchegar – Deixe-me ver o que vamos assistir...

- E você? Não quer me contar nada?

- Sobre o que?

- Sério, Augusto? – cruzou os braços – Por acaso eu vi um fantasma? Era um amiguinho? Casinho novo?

- Longa história. Não é a ocasião ideal para falar sobre isso... “Uma Linda Mulher”? – mudei de assunto propositalmente – Jura?

- Gosto dos clássicos – ela desdenhou.

- Tudo bem, tudo bem... – revirei os olhos.

Passei o braço ao redor do seu pescoço e ela envolveu o meu peito. Parecíamos reviver a fase de ouro da faculdade novamente. Fiquei fazendo cafuné no seu cabelo, enquanto Julia Roberts começava a desfilar pela Hollywood Boulevard na televisão. Não tardou muito e acabamos adormecendo ao som de “Pretty Woman”.

+++++

O despertador estava quebrado, ou não tive a capacidade de reconhecer o som. Tomei um susto quando constatei que o relógio já marcava quase dez da manhã. Ergui o tronco para acordar Juliana e percebi que a cama estava vazia. Olhei para o banheiro e a porta continuava aberta. Levantei-me bocejando, imaginando que ela preparava algo na cozinha, mas encontrei um recado ao lado do quadro presenteado no meu aniversário:

- “Acho que surtei um pouco ontem. Desculpa por qualquer exagero. Para recompensar, vou começar te dando uma folga hoje. Não se preocupe comigo, tá?”.

Trabalho e isolamento: já conhecia essa equação da minha sócia para lidar com as adversidades. Obviamente, não aceitaria o descanso, mas resguardaria o seu momento. Alonguei o corpo para espantar a preguiça e peguei o celular para avisa-la sobre a minha presença na empresa. Não tinha notado, mas havia uma resposta de Adriano ao meu questionamento na noite anterior:

- “É melhor eu ficar sozinho. Você não entenderia...”.

Fiquei bastante intrigado e decidi insistir no assunto:

- “Tente. Talvez descubra que o meu senso de compreensão é maior do que imagina” – digitei.

Resolvi esperar uma resposta e desci para preparar um bom café da manhã. Atraso por atraso, pelo menos estaria abastecido. Quase meia hora depois, recebi o apito de uma nova notificação:

- “Adriano enviou uma localização”.

Estranhei a ação e abri o ícone do mapa. Era uma rua que nunca tinha ouvido falar. Diminuí o zoom e percebi que o lugar era em Jundiaí, município próximo a São Paulo (capital). Encarei a tela do celular sem fazer a mínima ideia do que aquilo poderia significar. “Um convite?”, “É onde ele está agora?”, não sabia o que pensar. Inquirir seria o mais prático, mas procurar saber demais poderia assusta-lo. Algo me dizia que ele já tinha feito um imenso esforço para compartilhar tal informação.

Tracei uma rota e notei que levaria mais de uma hora para chegar. Por um breve instante, pensei na folga presenteada. Sem raciocinar muito, liguei para Marta e perguntei se Juliana estava lá. Ao receber a confirmação, avisei que não iria trabalhar, mas pedi que ela ficasse de olho na chefa, e me avisasse caso presenciasse qualquer comportamento diferente. Ela concordou, sem objeções.

Com a consciência livre, voltei à conversa virtual. “Ok, vamos arriscar...”:

- “Posso sair em quinze minutos. Espera por mim?”.

- “Espero” – respondeu timidamente, minutos depois.

Já alimentado, tomei um banho e troquei de roupa na velocidade da luz. Em pouco tempo, já estava enfrentando o trânsito típico do fim da manhã, rumo a uma cidade que nunca tinha visitado. Com o GPS programado, aumentei o som e silenciei qualquer tentativa de suposições e hipóteses mirabolantes. “Ele agiu de forma estranha ontem e provavelmente está querendo contar algo. Aceite essa abertura como um ato de confiança”, repetia a mim mesmo.

Mais de uma hora depois – considerando alguns engarrafamentos e um acidente congestionando boa parte do caminho – cheguei à avenida indicada pelo aparelho. Para o meu conceito (arcaico, confesso) de cidades mais afastadas, era uma via bastante movimentada. Olhava ao redor e não visualizava qualquer indício da presença de Adriano. Seria uma tarefa difícil.

Estacionei o carro próximo a um mercado e liguei para o celular dele, que caía seguidamente na caixa postal. Tentei diminuir o raio de precisão no aplicativo em busca de um ponto mais exato e comecei a caminhar com mais atenção. A área mesclava prédios residenciais com algumas lojas de rua. O endereço não sinalizava qualquer número ou outro nome que não fosse o da avenida.

Apesar da trégua do sol, que vez ou outra se escondia atrás de algumas nuvens, os longos minutos andando a esmo pareciam demonstrar que aquela seria uma missão impossível. Estava prestes a desistir quando, do outro lado da rua, o avistei sentado em um ponto de ônibus. Seu olhar parecia perdido e vazio, o que me deixou bastante preocupado.

“Será que ele cansou de esperar e já estava indo embora?”, atravessei calmamente. Assim que percebeu a minha aproximação, voltou a ficar cabisbaixo. Poucas pessoas aguardavam o transporte no lugar.

- Demorei muito? Não fazia ideia de onde deveria procura-lo exatamente...

Balançou a cabeça negativamente, mudo. Um coletivo se acercava e a maioria presente levantou-se para entrar, permitindo-me que sentasse ao seu lado:

- Vem muito aqui? – tentei puxar assunto.

- Frequentemente – balbuciou.

- É algum lugar especial? – contemplava os arredores.

Não obtive retorno, e decidi respeitar o seu desenrolar. Avaliava o movimento em uma pizzaria do outro lado da rua, próximo a uma lanchonete, quando ele retomou:

- A primeira lembrança viva que eu tenho em minha memória, é desse lugar. Não lembro o dia, as circunstâncias, ou se era exatamente assim, mas lembro-me perfeitamente a ocasião...

Olhei a estrutura daquele espaço público, curioso com o que viria a seguir.

- Foi a última vez que vi a minha mãe – completou.

Senti um aperto no coração, imaginando que algo trágico tivesse acontecido.

- Eu tinha quatro anos, quase cinco, quando ela me trouxe até aqui. Não sabia para onde iríamos, são flashes um pouco turvos, mas sentamos e aguardamos. Foi uma longa espera, e talvez ela estivesse esperando a brecha ideal... Eu não sei.

- Como assim?

- Numa determinada parte do dia, que não sei precisar, um ônibus chegou. Foi tudo muito rápido. Sem dizer uma palavra, ela sorriu para mim, se levantou e, evitando olhar para trás, foi embora. Desapareceu, simples assim.

Prendi a respiração, angustiado.

- Talvez ela tivesse me esquecido, talvez ela voltasse mais tarde, mas nada aconteceu. Nunca mais a vi.

- Ela... Ela te abandonou? – mal conseguia formular o argumento.

- Quando anoiteceu, não sabia para onde ir e acabei dormindo aqui. No dia seguinte, passei a sentir um medo real. Estava sozinho, com as mesmas roupas, com fome, com sede... Não tinha conhecimento de nenhum parente, de como telefonar para alguém... Só me restava chorar – ele olhava fixamente para o chão – Chorava alto, desesperado, porque queria que alguém me enxergasse.

- Ninguém te ajudou?

- Uma senhora, depois de algum tempo, me perguntou se eu estava perdido. Narrei o sumiço da minha mãe e ela pediu ajuda para um policial. Após escutar o que tinha acontecido, ele me levou para um abrigo. Com o passar dos anos, entendi que chamaram a assistência social, e emitiram um alerta para uma delegacia. Tentaram encontrar algum familiar próximo, mas não tiveram êxito.

- Espera um pouco... Anos? – estava chocado – Sua mãe nunca voltou?

- Passei mais de uma década saltando de abrigo em abrigo, respondendo formulários ocasionais do governo, alimentando uma esperança inútil, respondendo perguntas no automático, para então encontrar alguém que eu pudesse chamar de família.

Travei os dentes, com um nó na garganta.

- Às vezes, quando fico pra baixo ou com raiva – lamentou – Eu volto aqui. Em alguns momentos, tenho a sensação de que ela vai aparecer, ou que está me observando à distância. Eu nunca entendi os motivos.

“Que tipo de pessoa é capaz de uma monstruosidade dessas?”, não consegui evitar o julgamento. Precisava saber o que dizer e pensei um pouco antes de continuar:

- Não há o que entender – repousei a mão no seu ombro – Eu não consigo imaginar o que você passou, e sei que deve ter vencido uma série de dificuldades, mas tenho certeza de que a experiência o tornou um ser humano evoluído, capaz de mudar a realidade à sua volta. Talvez a mulher que te gerou não mereça ter essa certeza, talvez sim. Nunca saberemos as suas razões. Não se culpe por isso.

- Existe um determinado prazo para se permanecer em um orfanato. Por mais que fosse bem aceito e tivesse um tratamento digno em alguns deles, nunca experimentei uma interação próxima de um lar. Cheguei numa fase onde só estudava, tentava fazer amigos e conviver pacificamente, e aguardava...

- Aguardava o que?

- Quando você tem mais do que dez anos, as possibilidades de ser adotado por alguém são praticamente nulas. Àquela altura, eu só pensava em como sobreviver quando completasse a maioridade. Precisaria trabalhar, me sustentar, morar sozinho... Acho que o meu maior temor era não estar preparado e ser engolido pelo sistema.

- Você foi adotado?

Adriano confirmou:

- Digamos que faço parte da exceção das estatísticas. Eu devo muito aos meus pais.

-Eles sabem sobre... A sua sexualidade? – sondei.

Recebi um breve sorriso em troca:

- Eles entendem perfeitamente.

- Que bom... – respirei fundo após a pedrada que tinha sido aquela revelação.

Apesar do final feliz, a carga da história mantinha o clima um pouco pesado. Tentei mudar de assunto e alegra-lo um pouco:

- Vai fazer alguma coisa durante o resto do dia?

- Eu já estou matando aula, então acho que não...

- Ótimo, estou livre também. Podíamos fazer alguma coisa.

- Não precisa voltar para o escritório? O seu cotidiano parece ser bem atarefado.

- Hum... É sim – concordei – Mas isso pode esperar. Conhece aquela pizzaria ali? – apontei.

- Não, mas admito que estou com muita fome.

- Ótimo, já sabemos por onde vamos começar...

Levantei e o puxei para me acompanhar. Adriano parecia se livrar de um grande peso ao expor parte de sua trajetória. Ainda assim, queria desanuviar as particularidades da minha visita o mais rápido possível. Logo que nos acomodamos, não tardamos em fazer o pedido e continuar a conversa. Ter acesso a uma parte da sua vida começava a me incentivar a fazer o mesmo:

- Olha... Eu compreendo perfeitamente a sua reação depois de ontem.

- Desculpa se fui ríspido demais. Acho que é um mecanismo próprio para me blindar contra gente babaca. Nunca demonstro algum aspecto físico, prefiro demonstrar indiferença.

- Acho que entendi o recado... – relembrei a “noite do amasso interrompido”.

- Não é isso – riu com sinceridade – Tá, você foi um pouco babaca sim, mas me refiro a essas pessoas que acham que tem um problema, quando na verdade desconhecem algumas virtudes da vida.

- A Juliana é uma grande amiga. Ela tem um jeito meio enérgico de demonstrar algumas frustrações. Talvez ela precise de mais maturidade para lidar com o assunto.

- Não quero agourar ninguém, mas se ela acha que ser mãe é simplesmente colocar alguém no mundo, talvez ela ignore alguns princípios básicos da maternidade.

- Entendo o que está dizendo. Dê uma chance para que ela trabalhe isso, tenho certeza que aprenderia muito com a sua história.

- Augusto, eu não acho que você entenda realmente.

- Não entendi... – franzi a testa – Só porque sou dono de uma empresa e tenho um bom apartamento?

Um breve silêncio se fez na mesa. A pizza chegou e o garçom começou a nos servir. Não conseguiria almoçar sem antes expor o que estava pensando:

- Adriano, você não conhece a minha história para julga-la – fitei o seu olhar – Eu tinha sete anos, um pouco mais que a sua idade, quando perdi os meus pais. Os dois, de uma única vez. A irmã da minha mãe me criou, mas isso nunca significou muita coisa, talvez um pouco de sorte.

Ele parecia surpreso com o que acabara de escutar.

- Sentia falta, me isolei, fui uma criança introvertida que não tinha amigos, e estava fadado a crescer assim. A questão é que provavelmente avaliamos o cenário de forma similar: eu decidi correr atrás. Recebi um incentivo, é verdade, mas partiu de mim. Poderia morar com os meus tios até hoje, mas preferi colocar os meus projetos em prática. Não estou falando de oportunidades. É visível que tive mais do que você, e vejo que está tentando corrigir isso, mas, por favor, não generalize o que passei.

Após concluir o relato pessoal, cortei um pedaço da massa e comecei a mastigar lentamente.

- Acho que a babaquice mudou de lado agora... – ele refletiu.

- Relaxa, não falei para agredir. Estamos quites – ri.

- Prefiro entender que somos dois exemplos práticos de que a vida é cheia de privações, e parte da nossa existência é destinada a derrubar esses muros.

O nível de sagacidade presente nas suas divagações continuava a me surpreender:

- Tem razão. Talvez a gente precise se orgulhar mais das barreiras que vencemos.

Ele sorriu, como se agradecesse o pensamento.

- Só para concluir: Eu concordo que Juliana agiu de uma maneira irracional e incoerente, mas tenho certeza que ela não soube se expressar. Imagino que cedo ou tarde, enxergará isso.

- Não precisa se justificar. Afinal, é sua amiga.

- Gostaria que um dia fosse a sua também.

A vermelhidão na sua bochecha era gritante, e preferi mudar de assunto para não deixa-lo acuado:

- O que tem de interessante para fazer em Jundiaí? Conte mais sobre a sua cidade, você será o meu guia hoje.

- Conheço pouca coisa além de dois abrigos, uma escola pública e um ponto de ônibus. Nem tenho certeza se nasci aqui.

- Então vamos desbravar juntos – procurava não retomar o tópico – Acho que passei por um shopping no caminho. Topa pegar um cinema?

Aquelas pequenas atitudes pareciam pega-lo desprevenido. Aproveitamos toda a tarde para nos abastecer de curiosidades sobre o outro. Adriano me explicava de onde surgira a paixão pela arquitetura, eu explanava o meu vício nos quadrinhos; Ele demonstrava ansiedade ao explanar o dia a dia do último semestre na faculdade, e eu dava dicas de como se dar bem no mercado de trabalho; Ele contava as reais impressões que tivera do carnaval de Salvador, e eu revidava com outros “causos” presenciados na festa. Qualquer conversa parecia interessante, ou motivo de risadas.

Procurávamos deixar o assunto “família” fora da pauta, e foi uma decisão acertada. Era inegável que estava sendo divertido e, acima de tudo, prazeroso. Não me lembro de passar tantas horas me abrindo para alguém dessa forma. Após a sessão de um filme pouco marcante, onde ficamos mais mencionando gostos pessoais do que assistindo a projeção, decidimos voltar.

É um pouco clichê, eu sei, mas assistir o sol se por na estrada parecia coroar um dia que tinha tudo para ser uma avalanche de dilemas e lástimas, mas resultara incrível. Adriano agradeceu por ter escutado um pouco da sua origem sem trata-lo como uma vítima, e eu reconheci que o relato tinha sido inspirador. Quando parei na frente do seu prédio para deixa-lo, procurei recompensar com um abraço, mas partiu dele o desejo de se despedir com um beijo. Coisa rápida, quase um estalo, mas que deixou vivo o sorriso no meu rosto. “Calma Augusto, foi só um selinho...”, concordei com o inconsciente. A atitude, contudo, significava um mundo de possibilidades para mim.

Pensei em seguir para casa, mas assim que ele partiu, liguei para Marcos, verificando que os cônjuges estavam sozinhos no apartamento. Avisei que precisava conversar com a dupla, e que logo chegaria. Precisava esclarecer a situação e alguns rumos a serem tomados o quanto antes.

+++++

Fui recepcionado de maneira morna, por um colega ainda abatido pelo comportamento da esposa. Ele alertou que Juliana estava no banho, mas logo chegaria. Perguntei como tinha sido o dia, mas alegou que ambos ainda não tinham debatido sobre o assunto em questão. “Ótimo, até porque não há o que discutir”, pensei.

- Guto! O que houve? – ela atravessou o corredor enxugando os cabelos.

Sua aparência parecia mais relaxada, abrindo espaço para que falasse o que desejava:

- Queria bater um papo com vocês, pode ser?

- Claro... Marquinhos acabou de pedir uma comida mexicana. Senta aí.

- Não sei se vou demorar muito. Guga tá aí?

- Saiu agora a pouco com Flávio – alertou.

- Certo – mantive-me em pé – Acho que devem imaginar o motivo da minha visita.

- Olha, eu sei que ontem à noite não foi muito legal... – ela se adiantou.

- Vocês brigaram? – o marido estranhou.

- Por favor, não falem nada – interrompi – É a minha vez, ok?

O casal parecia ansioso, mas acataram a minha solicitação.

- Hoje foi um dia muito foda pra mim. Digo, no sentido positivo. Não fui trabalhar e, mesmo que por um curto período, me desliguei da quantidade absurda de trabalho e de tantos outros problemas. Isso para uma segunda-feira comum na minha agenda parece bastante surreal, mas eu me permiti.

Alternava o olhar entre os rostos atentos dos dois e evitava pensar demais sobre o que estava discorrendo:

- Coincidentemente, e isso é uma coisa muito nova, eu também me permiti a outras possibilidades, um conselho que me repetem à exaustão. E esse gesto me fez perceber – repito: em um único dia, vejam só! – a puta sorte que vocês tiveram de se encontrar. Sempre me orgulhei muito de ter apresentado os dois, porque sabia que podia funcionar, que tinha tudo a ver. E gente, se eu tivesse um centésimo da chance de viver uma história tão legal como a de vocês, seria um cara muito feliz.

Marcos passou a exibir um semblante mais triste, deprimido.

- E chegamos ao ponto principal: a Ju não pode engravidar. E daí? Um temia a reação, o outro achou que o casamento fosse acabar, todos ficaram desesperados... É motivo suficiente? Ontem engoli um monte de baboseiras – me voltei a ela – por dois simples motivos: respeito sua dor e sempre coloquei a nossa amizade acima de tudo. Mas puta merda, minha vontade era te sacudir e responder cada absurdo que saía de sua boca.

Vi-me agitado, andando de um lado para o outro:

- Acha que não pode ser mãe? Acha que adotar alguém não é a mesma coisa? Que qualquer tipo de tratamento não é válido? Deixe-me refrescar a sua memória: eu fiquei órfão aos sete anos! – bradei – Pensa que não considero minha tia uma segunda mãe? Que não posso ser um pai decente se cuidar de alguém que não tem o meu sangue? Se você pensa realmente dessa forma, acho melhor rever urgentemente os seus conceitos.

A sessão “lágrimas” voltou com força total, mas não me deixei intimidar:

- Família pra mim é gente que moldou o meu caráter, que ainda me mostra o que é certo e errado, com quem posso contar a qualquer momento. Não é muito diferente do que somos, em minha opinião. É triste, beleza, mas lide com isso! Você nunca deixou que nada impedisse de seguir adiante com os seus planos. Porque essa máxima não vale agora?

- Eu não achei que fosse me afetar tanto...

- Ninguém está preparado para receber esse tipo de notícia. Mas caralho, vocês se amam! Isso é mais do que suficiente para superar qualquer coisa. Esse cara pensa em você todo santo dia – apontei com o gesticular frenético – tem a porra de um quarto vazio nessa casa à espera de alguém que compartilhe um pouco desse sentimento. Que egoísmo é esse?

- Não é, juro! Só preciso entender como passar por isso.

- Comece entendendo que está sentindo o que era esperado, mas agindo da pior forma possível.

- Amor... – Marcos se levantou em sua direção – Vem cá... – e tentou acalma-la – O Guto tá certo. A gente sempre encontrou uma maneira, concorda? Não importa como aconteça, nosso sonho vai se realizar. É um compromisso, e te garanto que vamos até o fim.

Juliana abraçava-o com força, entre soluços e lágrimas insistentes. Exausto, decidi me sentar um pouco. Alguns minutos depois, ela começou a se recompor e, com a cabeça ainda repousada no peito do esposo, retomou o diálogo, encarando-me:

- Jamais tive a intenção de provocar qualquer tipo de humilhação...

- Eu sei, e te conheço o suficiente para relevar qualquer coisa dita, mas não foi por isso que vim.

Ambos pareceram ensaiar um ar de dúvida, provocando-me um longo suspiro:

- Eu conheci alguém. E evitei falar ou comentar porque ainda estamos nos conhecendo. Não vou celebrar nem me vangloriar, pelo simples fato de ser recente e estar agindo com total cautela. Como disse, estou começando a me permitir, e quero que dê certo. Ontem você presenciou a saída repentina dele, o que também me pegou de surpresa. Só hoje eu consegui entender o motivo: ele foi adotado.

Minha amiga arregalou os olhos, num misto de espanto e vergonha.

- É por causa dele e de toda a história que escutei, que vim aqui para conversar. No fundo, só quero demonstrar que vocês são exemplos para mim. Por favor, não estraguem tudo.

Com os olhos vermelhos, Juliana me chamou com a mão. Sem esconder a vista igualmente marejada, apressei-me ao encontro dos dois. Passamos um bom tempo completando e contemplando um grande enlace, chorando e sentindo o calor reconfortante do outro. Sim, ainda éramos uma família. E sim, aquele dia continuava absurdamente incrível.

(continua)

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Comentários

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Nossssa que lição de vida,parabéns!!!!!👏👏👏👏

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Ai não sabia que tinha voltado. Amo d+ esse conto meu favorito!

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Como sempre, MARAVILHOSO! Pelahora,podes notar que não estou em condições de ficar tecendo comentário longo. aguardo, ansioso, a continuação. Um abraço carinhoso para ti e pra o ruivo,

Plutão

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Que capítulo foda! Saudade do caralho de ler teus capítulos com essa intensidade que tu transmite. To emocionado aqui com o final. Chocado com o que Adriano já passou. Muito bom ler mais um capítulo seu. Escrevendo inclusive esse comentário escondido no trabalho.

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