Asfalto - Capítulo 04

Um conto erótico de Lord D.
Categoria: Homossexual
Contém 10072 palavras
Data: 07/01/2016 19:33:33

– Capítulo 04 –

Eu sou um verme

- Bem Conrado, seu trabalho vai será simples – começou Luciano Jadão, explicando com tranquilidade. Conrado estava sentado de frente para seu pai em sua sala, um pouco de despojado, demonstrando pouco interesse no que ouvia. – Como você não tem nem uma formação na área médica, e eu quero que você esteja sob meus olhos, vai trabalhar como meu secretário: anotar compromissos; apresentar-me prontuários; acompanhar-me em reuniões, etc.

- Ou seja, tortura até a raiz do cabelo – disse Conrado, jogado na cadeira.

- Corrigindo. Se você fizer seu trabalho com a mesma dedicação com que tem auxiliado o Miguel, tudo pode ser reconsiderado – Luciano enfatizou a palavra “tudo”.

Conrado ficou um pouco sem jeito com a observação que o pai fez, mas concordou:

- OK! – o filho por fim se deu por vencido.

Os dois não conversavam sobre nada de cunho pessoal. Conrado fazia questão de se manter longe desse território. Por um lado, Luciano até preferia, pois não aguentaria mais tantas acusações cruéis e injustas.

À tarde seguiu com tranquilidade, para satisfação e surpresa de Luciano. Conrado fez tudo conforme ele pediu, mas sempre aproveitando brechas para destilar suas piadinhas irônicas. Luciano também não esperava um milagre, mas sem dúvida a detenção ocupou bem o papel de “santa milagreira”. Quase ao fim do expediente, ele chamou Conrado novamente para uma conversa. Havia um assunto ainda inacabado.

- O homem que você atropelou foi transferido para cá, a meu pedido – informou Luciano.

- Quanta generosidade – Conrado estava desesperado para sair dali. Sentia-se um pássaro na gaiola. E seu pai era um gato que o espreitava, á espera de um mínimo deslize.

- Justiça! Essa é a palavra correta – disse seu pai. – O que ocorre é que meu advogado conversou com a família dele e firmamos um acordo financeiro, em troca de não processá-lo pelo atropelamento. Então, você terá um prejuízo a menos para se preocupar.

- E então? O que devo fazer? Agradecer eternamente pelo seu ato de bondade?

- Eu quero que você se dirija ao leito do homem atropelado, e faça o mínimo que a decência pede: peça desculpas.

- Você só pode estar brincando – quis gargalhar Conrado.

- Olhe nos meus olhos! Parece brincadeira? Estou com cara de quem está brincando? – vociferou Luciano.

Conrado se manteve em silêncio, então seu pai informou localização do homem:

- Ala leste, quinto corredor, quarto 16.

O filho engoliu sua arrogância e saiu da sala em silêncio como um cão adestrado. Sua rebeldia não quebrava mais a barreira da autoridade de seu pai. Não era de se admirar, depois de tantos anos aguentando as atitudes doe Conrado, desde usar drogas até lhe acusar todos os dias da morte da mãe. Luciano estava exausto, e não permitiria mais ataques, principalmente diante das últimas irresponsabilidades de seu filho.

No corredor, Conrado estava muito nervoso e escolhendo as palavras certas para falar com o infausto atropelado. De cabeça baixa e olhos voltados para os pés vacilantes e lentos, ele esbarrou em alguém que vinha na direção oposta.

- Não olha pra onde anda... Miguel? – ele se assustou.

- Você é que vinha distraído, Conrado – respondeu Miguel.

- Desculpe-me – ele disse triste. Incomum!

- Você está bem? Está pálido, parece que está sentindo uma dor.

- Estou indo ver o homem atropelado – disse Conrado com a voz abafada.

- Ah, entendi – suspirou Miguel. – Deve ser demais para Corado Lima Jadão pedir desculpas.

- Eu não sei como se faz esse troço! – irritou-se Conrado. – Você pode...

- Ajudar você? Talvez – respondeu Miguel.

- É sério – Conrado segurou nos ombros de Miguel – Você deve ser muito bom nesse negócio. O que eu tenho que fazer para você me ajudar?

- Hum... Deixe-me pensar – Miguel mordeu o lábio e semicerrou os olhos, antes de decidir: – Preparar a canção de amanhã para as crianças – disse Miguel.

- Tá brincando né? Você é que tem jeito pra Xuxa, não eu – ele tentou fazer uma piada mais não conseguiu fazer o filho do pastor rir.

- Tudo bem. Que Deus te ajude nessa empreitada – Miguel ia saindo, mais Conrado o deteve pelo braço.

- Espera! Não pode ser outra coisa? – Conrado implorou.

- Até mais Conrado – era o não de Miguel

- Tá bom, então! Eu aceito – disse o Jadão. – Mas ninguém pode ficar sabendo dessa porr... Desse negócio, OK?

- OK! – concordou Miguel rindo pra ele. – Pode soltar meu braço então. Conrado enrubesceu.

Os dois seguiram para o quarto do enfermo conversando como dois amigos de longa data. Conrado com seu jeito malandro de andar, enquanto Miguel firmava os passos com uma segurança e leveza.

- E então? O que tá fazendo aqui no hospital à essa hora?

- Apesar de não ser da sua conta senhor Conrado Lima Jadão.

Conrado começou a rir discretamente, olhando para o lado oposto de Miguel.

- Estive a visitar uma senhora que foi abandonada de afeto pelos filhos – continuou Miguel.

- Cara, tu quer ser mesmo a próxima Madre Teresa – riu com vontade Conrado.

- Sou bem mais bonito que ela – disse Miguel rindo.

- É mesmo – concordou Conrado, quase batendo na boca pelo comentário. – Pra quem gosta do seu tipo, quero dizer. – ele gaguejou

Ficou um silêncio estranho, constrangedor entre os dois. Os passos finais foram eternos e pesados. Enfim, Conrado parou diante da porta 16, tendo Miguel logo atrás de si.

- Vou eu primeiro – disse Miguel entrando no quarto. Conrado ficou á sua espera, nervoso com a situação, curioso com o que ele diria ao homem, e com a cabeça a mil por não conseguir tirar aquelas imagens dos seus pensamentos. Cabelo cacheado, olhos grandes e vivos de mel, boca vermelha de cereja, bunda... Ahhhhhhhhhh que bunda! Que merda era aquela que estava pensando, repetia para si mesmo mentalmente. Só podia ser por falta de sexo. Mesmo não fazendo muito tempo, mas isso se resolveria com uma boa trepada com Michele, pensou ele. Uma buceta! Era disso que ele estava precisando, era isso que ele ia ter essa noite.

- Pode entrar – Miguel interrompeu seus pensamentos confusos.

- E então?

- Ele vai falar com você – explicou Miguel. – Ricardo.

- O quê? – perguntou Conrado quase entrando no quarto.

- Esse é o nome dele, Ricardo – informou Miguel.

Ele balançou com a cabeça em sinal positivo e sumiu porta adentro.

Um homem de meia-idade com feições pacíficas estava no leito. Ele tinha apenas algumas escoriações na pele, o estrago mesmo era interno.

- E aí? Belê? – Conrado foi analisado minuciosamente pelo homem.

- Acho que minha situação deve responder a você – disse Ricardo secamente.

- Senhor Ricardo eu queria... É... Eu não vi o senhor naquela noite – Conrado sentia sua garganta seca. – Foi mal!

- Hã! – o homem suspirou incrédulo. – Escute rapaz, eu não tenho a menor disposição de ouvi-lo, e muito menos assistir sua tentava patética de pedir desculpas. Só aceitei falar com você por causa do seu amigo Miguel, que esteve antes aqui comigo. Esse sim é uma pessoa de Deus.

- Ele não é meu amigo – corrigiu Conrado.

- Faz sentido. Um rapaz como aquele nada tem haver com você. O seu único defeito é a excessiva generosidade e inocência. Ele tentou, milagrosamente, elencar alguma qualidade sua, e me confidenciou que você estava passando por um problema muito difícil mais que no fundo era uma boa pessoa. Disse que você era um amigo, que estava tentando concertar sua vida. Disse que dar uma segunda chance pra alguém, é cumprir com mandamento de amar o próximo. É dar uma chance de renascimento.

- Ele disse isso? – Conrado estava perplexo. – Por quê?

- É uma resposta que você deve buscar, em minha opinião – disse Ricardo.

- Desculpe-me pela minha irresponsabilidade. Eu fui um inconsequente. Mas acredite, estou pagando muito caro por isso. – por fim ele conseguiu dizer. Saber sobre a conversa de Miguel e Ricardo facilitou o pedido de desculpas, dentro das possibilidades de Conrado.

- É bom saber que você está sendo punido – o homem abriu um leve riso. – Mas, escute: se o Miguel não é seu amigo, eu no seu lugar trataria de mudar rapidamente isso.

- Boa recuperação pra você – Conrado tocou no joelho de Ricardo, e nada disse sobre o conselho do homem, mas sua mente muita coisa o dizia.

Do lado de fora, Miguel estava escorado na parede de olhos fechados. Conrado saiu sutilmente do quarto e ficou observando o companheiro, contemplando sua figura tão calma e simples. De repente, Miguel abriu os olhos e encontrou os de Conrado, vivos como um diamante azul de lapidação perfeita.

- E então? Deu tudo certo? – perguntou Miguel ansioso. Conrado estava mudo.

- Ele não aceitou as desculpas não foi? Se quiser eu poso voltar lá...

- Deu tudo certo – disse Conrado com o leve sorriso. – Obrigado Miguel!

- Não há de que – Miguel ficou espantado. – Não fiz nada demais, quer dizer, não foi fácil convencer ele a falar com você, mas, temos um trato né?

- Eu sei. Só me diz uma coisa.

- Pode perguntar.

- Por que se importa comigo? Eu não tenho sido legal com você.

- Todo mundo merece uma segunda chance, até o delinquente Conrado Lima Jadão – Miguel fez piada arrancando um sorriso pleno do outro. – Que Deus ilumine você, e não permita que se perca no caminho. – Miguel o abraçou.

“Que Deus ilumine você meu amor, e nunca permita que se perca no caminho”, dizia Clarice a Conrado, todas as vezes que ela o colocava para dormir.

Conrado retribuiu o abraço com medo e vontade, ao mesmo tempo. Era tão bom sentir Miguel. O calor do seu corpo, o cheiro de jasmins. Era um aconchego, um refúgio estar naqueles braços afetuosos. O abraço durou alguns segundos, mas foi tempo o suficiente pra Conrado perceber que ele precisava da amizade e do apoio do outro. Sim. Era isso. A amizade sincera de Miguel era um sentimento diferente que ele nunca tivera com Pezão, Azeitona e outros do naipe. Um sentimento não novo, mas que a muito ele não sentia e praticava.

- Até amanhã. Espero que cumpra com sua parte – disse Miguel sorrindo ardentemente. Conrado fez um gesto de cabeça, confirmando.

Miguel saiu dando-lhe as costas. O Jadão ficou fitando cada passo dele. De fato, o filho do pastor poderia ser um grande amigo. Mais que bundinha linda, Conrado pensou, enquanto Miguel sumia pelo corredor da ala.

***

Conrado olhava para o teto do seu quarto, absorto naquela imagem impregnada em sua mente. Por que aquele garoto não saia da sua cabeça um instante? Suas palavras se repetiam todo momento. Seu sorriso era reproduzido em imagens alheias. A própria consciência de Conrado o traía, assumindo a forma de Miguel.

Meio dormindo, meio acordado, o filho de Luciano estava suado, ofegante, e muito excitado. Ele se levantou repentinamente e se trancou no banheiro, ligando o chuveiro com urgência e deixando a água propositalmente gelada baixar a temperatura do corpo em brasa, na tentativa de contrariar a adrenalina. Nem quando ele esteve mais chapado, sentiu todas aquelas sensações insanas. Seus músculos e tendões se contraiam com força. Seu corpo estava trincado e sua mente dominada pela irracionalidade. Ele não queria nem ao menos pensar nisso. Mas no fundo, o seu desejo primal, era possuir

Miguel com toda a excitação e loucura a flor da pele. Conrado lutava internamente, mas suas mãos queriam possuir Miguel, fazê-lo dele.

Conrado saiu do banho, antes que caísse na doce tentação de bater uma fantasiando Miguel. Isso era inconcebível. Estava nervoso, angustiado e duro. Duríssimo.

Ele se vestiu rápido e desceu as escadas, encontrando Luciano e Júlia conversando na sala.

- Vai sair? – perguntou seu pai.

- Posso?! Ou estou em prisão perpétua?! – ele perguntou com aspereza além do comum.

- É claro que pode – respondeu Luciano. – Tem liberdade pra ir e vir, apenas pense bem no que vai fazer com essa liberdade, pois você está mais do que ciente da sua situação.

- Tá certo! Sermão já foi dado, meu saco já está cheio, então tô vazando!

- Ficamos muito felizes pela sua atitude hoje para com o Ricardo – disse Júlia simpaticamente.

- Fui forçado a isso – ele rebateu fingindo indignação. Logo deixou a casa. Seu pai e sua madrasta ficaram sozinhos.

- Acha que vou ter meu filho de volta? – perguntou Luciano um pouco triste, e a armadura desfeita.

- Se tivermos sorte, um anjo pode nos auxiliar – respondeu Júlia otimista.

- E desde quando você acredita em anjo meu amor – Luciano deu-lhe um selinho.

- Tenho reconsiderado minhas opiniões nestes últimos dias – declarou Júlia.

Luciano a beijou profundamente e dos dois ficaram abraçados por muito tempo. Na garagem da mansão, Conrado sacou o celular e buscou nos contatos um número com muita convicção.

- Oi gatão, lembrou-se de mim – Michele atendeu do outro lado da linha.

- Quero ver você agora! – exigiu Conrado com cara de poucos amigos.

- Você manda e eu obedeço – ela disse com uma voz manhosa.

Os dois se encontraram em um motelzinho pé-de-chinelo fora do perímetro urbano. Era o mais próximo, e Conrado tinha pressa.

No quarto, enquanto Michele falava sem parar, Conrado tirava sua roupa com pressa e em silêncio. Surdo a qualquer palavra que ela proferia. A moça se calou quando seus olhos encontraram o corpo perfeito dele nu, diante dela.

- O que tá esperando? – ele perguntou secamente. – Tira logo a roupa.

- Ai, amor eu queria que você mesmo tirasse, com muito carinho e beijinhos – ela o olhava maliciosamente com um sorriso no canto da boca.

Como a mesma intensidade afetuosa de um bloco de gelo, Conrado veio em sua direção e segurou seu cabelo com força, fazendo Michele ajoelhar. Enfiou seu pau goela abaixo na moça sem se fazer de rogado. Seu membro ia até o fundo da garganta dela, fazendo-a ter muitas ânsias de vômito. Michele tentava, em vão, diminuir o ritmo frenético de seu parceiro, empurrando a virilha dele para trás. Em vão. Isso só deixava Conrado mais louco, que se movimentava em um vai-vem veloz. Não demorou muito e ele encheu sua garganta de esperma. Aquilo foi sentido por Conrado como um descarregamento. Não havia prazer. E se não houve pra ele, tão pouco houve pra ela.

Depressa Conrado levantou Michele e a virou de costas com brutalidade, erguendo seu vestido curtíssimo e rasgando sua calcinha no corpo. Michele estava assustada. Não que ela não gostasse de um sexo forte, ainda mais com Conrado. Mas algo de errado estava acontecendo.

- Assim eu não quero Conrado – ela disse, mas ele nem deu atenção.

Conrado a pressionou com seu peso, penetrando de uma vez só nela. Michele soltou um grito de dor. Ele estava fazendo sexo anal, e nem se deu conta. Seu mastro rasgava o virgem anelzinho dela. As imagens viam em desordem em sua mente. Ele metia com violência, a cada vez que via o sorriso de Miguel. Comprimia seus olhos tentando afastar aquele fantasma com feições de anjo. Estava cego a qualquer coisa externa. Seus movimentos de penetração estavam alheios aos seus sentidos.

Michele chorava e gemia. Miguel sorria e o abraçava.

Ao fim, a única coisa que restou foi muito sangue nos lençóis, uma consciência que parecia carregar uma bigorna, e uma moça muito assustada. – Desculpa aí Michele ele ofegante e muito suado. – Eu não queria... Não estou bem da cabeça. – Conrado estava consternado – Essas restrições do meu pai, a começar pela interdição do meu dinheiro, estão me pirando.

Ela nada respondeu. Estava encolhida na cama. Grunhindo como um cão abandonado e ferido.

Os dois deixaram o motel em silêncio. Ele a deixou em casa, e voltou para a mansão, transtornado. Seus olhos estavam vermelhos e as veias saltavam na sua testa. Conrado entrou feito um louco em casa, esbarrando nas coisas. Luciano tomava água na cozinha, e ouviu o barulho da chegada de seu filho.

- Você está drogado?! – perguntou o pai assustado com o jeito do filho.

- Vai tomar no cu! – Conrado subiu trôpego pelas escadas. A porta do quarto bateu com violência.

Luciano ficou perplexo com perturbação do filho. Não era como das outras vezes, quando ele tentava ferir quem estivesse mais próximo a ele. Ele agora era o ferido. Algo de muito sério estava acontecendo.

Na igreja, Miguel não estava tão melhor do que outro. Nada que o pastor Oliveira dissera em seu discurso sobre “as improficuidades do mundo” fora ouvido por ele. Sua cabeça estava cheia de um único mal, ou, bem: Conrado Lima Jadão. Sua visão estava turva. Ele via seu pai gesticulando da tribuna como se estivesse em câmera lenta, com a voz distorcida, grave, assustadora. Miguel sentia sua respiração pesada. O terno o estava sufocando como uma armadura apertada. Sua pele transpirava cântaros de suor.

“Sou pecador. O pecado quer me derrubar. Mas sou forte e confio no Senhor. O inimigo não vai triunfar.”.

A música soava como uma acusação, martelando a sua cabeça e penetrando sua carne. Miguel não aguentou e deixou a assistência antes de terminar o Hino de Louvor Final e foi pra casa. Precisava de um refúgio onde não pudesse ver o balançar acusador dos braços de seu pai, e muito menos suas palavras de condenação. “Fogo do inferno!”, a expressão de deleite do pastor Oliveira.

Sua casa era no mesmo quarteirão da igreja. Dentro do banheiro, com o corpo, branco- rosado, nu, ele chorava desesperadamente, nem a água gelada era capaz de amainar as lágrimas salgadas, que brotavam da sua alma. Por que aquelas sensações haviam voltado? Por que Deus estava permitindo que o pecado tornasse a enlaçar seu coração? Miguel remoía essas indagações entre seus soluços pesados.

- Devia ser uma dor de cabeça, Miguel tem se exaurido muito com esses trabalhos voluntários. – o pastor Oliveira havia chegado a casa, e conversava com alguém.

- Tenho que concordar que ele assumiu muitas responsabilidades – uma voz feminina dialogava com o pastor.

- O importante é que a Palavra seja levada – se posicionou o pastor.

Ouvindo a voz de seu pai e de uma visitante, Miguel vestiu-se rápido, forçou uma cara de que “tudo estava muito bem”, e desceu antes que seu pai viesse ao seu encontro.

- Miguelzinho! – uma moça de cabelos longos ondulados veio abraçá-lo com saudade. Ela era bonita. Tinha uns olhos que passavam malícia.

- Oi Paula – ele respondeu secamente.

- Estamos sem nos ver faz quase um mês e você só diz “oi” – ela acariciava sua bochecha.

- Não estou me sentindo muito bem – justificou-se.

- Precisa de alguma coisa? – perguntou Fernanda, que estava ao lado do seu marido.

- Só descansar – ele respondeu – Eu vou dormir. Boa Noite.

- Dormir? – Paula se sentiu ofendida. – Miguelzinho, eu acabei de chegar de viajem. Seria uma desfeita me deixar aqui sozinha.

- Meu pai e a Fernanda fazem companhia para você – Miguel subiu. – Amanhã nos falamos.

O pastor fitava cada passo e gesto de seu filho com olhos de águia. Paula ficou no vácuo. Ela era apaixonada por Miguel fazia alguns anos. Ele nunca lhe dera atenção.

- Posso entrar? – pediu o pastor batendo na porta do filho.

- Claro pai – disse Miguel disfarçando o rosto choroso.

- O que aconteceu Miguel? Seja sincero comigo. Eu o observava da tribuna, e sua expressão era de pânico. Não posso acreditar que isso é apenas um simples mal-estar – o pastor Oliveira falava, sentado na borda da cama. – Aliás, você tem tido muitos mal- estares ultimamente.

Depois de uma longa hesitação ele começou a desabafar sofridamente:

- E se eu não for bom? Se eu estiver sendo dominado por desejos impuros, e não conseguir me libertar?

- Seja mais claro – o pastor fechou o cenho. – Você está fazendo alguma coisa condenável aos olhos de Deus?

- Não! – respondeu Miguel, marejando os olhos. – Mas algumas coisas estão explodindo na minha cabeça.

- Você tem consciência das consequências dessas coisas?

- Tenho – ele respondeu sem forças.

- Então, sabe que o desejo errado leva a prática errada, e por sua vez ao inferno.

- Então por que Deus não me livra desses desejos, já que estou pedindo tanto a ele?

- Você quer continuar na retidão? Granjear o favor do Senhor? Então seja bom, e repreenda todo o mal. Não questione o Senhor, obedeça aos seus estatutos.

Não era exatamente isso que Miguel queria ouvir. Esperava que ele se despisse da couraça de pastor e fosse apenas o seu pai. Como então tocaria em assuntos muito mais delicados? Como diria para ele que tem pensando mais em meninos do que em meninas? Que tem pensando em Conrado Lima Jadão?

A noite foi um horror, principalmente para Conrado. Miguel vinha como um pesadelo pra ele. Sonhava transando com o filho do pastor nos corredores do hospital. Arrancando-lhe a roupa e dominando ele com toda luxúria. O desejo ardia na pele.

Queimava os sentidos. Era insanidade, tesão, excitação, o êxtase do prazer. Ele beijava Miguel, o mordia, chupava, enlouquecia com seus gemidos.

- Não!!!!!! – Conrado acordou todo melado. Sua cama era um poço de gozo. Parecia que toda reserva de esperma tinha sido extraída por aquele sonho. Pesadelo.

- O que está acontecendo comigo? – ele começou a chorar em desespero. Eram seis da manhã. – Eu não quero isso – ele soluçava como uma criança.

Conrado estava muito confuso. Não havia ninguém pra ele conversar.

No Hospital Jadão, a manhã seguia dentro da rotina. Em seu horário de sempre, Miguel já estava a brincar com as crianças. A presença dos pequenos fazia com que ele se esquecesse dos problemas. Ele tinha uma capacidade incomum, de deixar toda a tensão do lado de fora da porta da oncologia infantil. Transmitir suas dores para aquelas crianças era a última coisa que ele queria.

No meio da agitação, Conrado entrou na sala abruptamente, usando óculos de sol.

- Bom dia! – cumprimentou Miguel.

- Só se for pra você – Conrado foi seco.

- Espero que seu mau-humor não tenha atrapalhado você a preparar a música que prometeu – Miguel ensaiou um sorriso.

Conrado lançou um sorriso nervoso. As crianças dividiam os olhares entre os dois em silêncio.

- Aconteceu alguma coisa? – quis saber Miguel.

- Sim. Aconteceu! – vociferou Conrado. – Esse hospital maldito, esse pai desgraçado que eu tenho, esse trabalho patético. Mas o pior de tudo é ter que aguentar um “crentinho” ridículo buzinando tanta merda no meu ouvido!

Luíza correu assustada ao encontro de Miguel, abraçando as pernas dele. Os olhos doces estavam cheios de água.

- Calma meu amor – Miguel a apertava. – Podemos falar lá fora? – ele voltou-se para Conrado, comprimindo os lábios para não explodir.

Longe das crianças Miguel pôs sua indignação pra fora.

- O que deu em você, hein? Com que direito você faz uma coisa dessas?

- Eu não estou nem aí pra o que você acha! – Conrado se esforçava para ser grosso ao extremo, mas em algum lugar de seu âmago a dor lhe corroía, pois ele queria na verdade abraçar aquele que ele estava ferindo. – Eu cansei disso tudo, e pronto!

- Você é ridículo! Eu não sei o que aconteceu na noite passada, mas eu não vou permitir que você tenha os seus ataques de garoto mimado, diante deles! – Miguel exaltou-se. – Por que você prefere ser assim?

Conrado o olhava sentindo uma dor no peito, mas ele sabia que se baixasse a guarda, em pouco tempo não resistiria ao que estava sentindo. Isso ele não podia aceitar. Era melhor voltar ser totalmente o que era.

Miguel abrandou sua voz, e voltou a falar com uma suavidade melancólica, cortante:

- Eu achei que...

- Não ache nada, a menos que tenha perdido alguma coisa – falou Conrado mais calmo.

- Eu perdi sim – Miguel o encarou fundo. – Perdi meu tempo com você – ele saiu deixando o Jadão pra trás.

Luiza chorou bastante no colo de Miguel. Ele quase não conseguiu realizar seu trabalho naquela manhã. Juntou todas as crianças e as pôs sentadas em círculo, bem juntinhas. Uma sentia o calor do corpinho da outra. Sem acompanhamento instrumental ele a cantar Wild Child da Enya. (http://www.youtube.com/watch?v=K7PSWUAAOH0 )

Seu coração não estava ensolarado como a música, mas era esse o clima que ele queria deixar para as crianças.

Sentindo-se melhor, Luiza saiu de seus braços e foi até uma mesinha, onde havia muitos papéis em branco e lápis para colorir. Ela começou a se dedicar a um desenho com afinco. Miguel seguiu cuidando das demais crianças. Conrado não voltou mais para lá.

Ao fim da manhã, antes do filho do pastor deixar o hospital, Luiza o entregou um canudo, preso por um laço de fita lilás.

- O que é isso meu amor?

- É uma coisa que eu fiz pra o tio Conrado melhorar – ela respondeu. – Ele não estava bem hoje né? Acho que ele ainda não está preparado. Eu gosto muito dele e de você, tio Miguel. E acho que vocês não deviam brigar.

Miguel ficou desconcertado com tantas verdades ditas por Luiza. Sem contra- argumentos, beijou-a e saiu, deixando ela e todas as crianças aos cuidados da equipe médica responsável.

***

- Meu irmãozinho, quanto tempo! – Pezão surgiu como um fantasma do inferno diante de Conrado, que estava jogado em uma calçada do outro lado da rua do hospital, chorando.

- E aí cara? – Conrado, disfarçando os olhos chorosos com os óculos o cumprimentou.

- Tu tá fazendo mó falta. Geral só pergunta pelo Demolidor – disse Azeitona. Estavam ele e Pezão no jipe verde-militar.

- As coisas não estão boas pra o meu lado – esclareceu Conrado, enquanto os seus companheiros desciam do veículo.

- A Michele contou pra gente que o teu velho tá pegando pesado contigo – disse Pezão, alisando o moicano.

Conrado lembrou-se da noite anterior com Michele.

- Olha cara, naquele dia no túnel, a gente só te deixou por que se fosse todo mundo pego o negócio ia melar, e também teu pai tinha como livrar tua cara fácil, fácil.

Conrado ficou encarando os dois com certa revolta. Ele estava puto pelo abandono, mas não queria dar um faniquito.

- Cara eu sei que você deve tá me achando um filho da puta, mas eu vou te provar que sou firmeza contigo, pode apostar – disse Pezão apertando os ombros de Conrado.

- Posso falar com você? – Miguel surgiu de repente, se aproximando do grupo. Conrado ficou desconcertado com a presença do rapaz, ali com seus amigos.

- O que o viadinho da Bíblia quer com você Demolidor? – perguntou Pezão, gargalhando. Miguel trazia uma Bíblia pequena na mão.

- O que tu quer manezão? – Conrado não conseguia olhar nos seus olhos, pois sabia que ia ver a imagem de si mesma no clímax da estupidez.

- A Luiza pediu pra eu te entregar isso – Miguel lhe deu o canudo com a fita lilás.

- Quem é Luiza Demolidor? É alguma piranha que tu tá comendo? – Pezão sorriu horrivelmente ao lado de Azeitona.

- Lava essa sua boca imunda pra falar da Luiza seu porco repugnante! – vociferou Miguel muito irado.

- Tá querendo morrer, viadinho de merda?! – Pezão arregalou os olhos e foi em cima de Miguel que não recuou.

- Segura a onda Pezão – Conrado o deteve. Pezão salivava de raiva.

- Qual é Conrado, vai defender essa coisinha aí? – Azeitona não entendeu a atitude dele.

- Ele é protegido do meu pai, não quero que sobre pra mim – Conrado fingiu um tom de ameaça.

Entendendo a situação colocada por Conrado, Pezão arrancou a Bíblia da mão de Miguel e lançou em uma caçamba de lixo próxima a eles.

- Quero ver tu e fuçar no lixo, seu viadinho filho da puta! – antes de Miguel reagir, ele derrubou a cartolina de sua mão e pisoteou chutando pra perto da caçamba – Chora agora sua merda.

A gargalhada asquerosa e marginal estrondou entre Azeitona e Pezão. Conrado permanecia calado, sendo massacrado interiormente.

- Como eu pude acreditar em você Conrado Lima Jadão? – Miguel era um poço de decepção. Olhava pra Conrado limpando as lágrimas.

- Cuidado Demolidor ele vai jogar uma maldição sobre nós – risos. Dessa vez Conrado forçou um. – Anda pastorzinho engana-trouxa. Invoca dez pragas sobre nós. Cadê o teu Deus dos exércitos? Ele deve ter ido cagar e esqueceu de levar papel, por isso tá demorando a ouvir tua oraçãozinha – Pezão era cruel. Ele ficou simulando estar endemoniado, fazendo caras e bocas, implorando o auxílio de Miguel.

- Eu não preciso pedir pragas a Deus – começou Miguel enojado de tudo, principalmente de Conrado que era partícipe daquilo. – Ser vocês já é maldição demais. Miguel saiu, ainda ouvindo ameaças de Pezão, e promessas dele pra Conrado de que ia provar sua amizade depois de tê-lo abandonado no racha do túnel que ocasionou o atropelamento de Ricardo e a prisão de Conrado.

Miguel caminhava apressadamente. Seus passos eram largos e firmes. Ele sentia uma pontada na cabeça, que se estendia até os seus olhos, que estavam como um dique a ponto de romper. Sentia as lágrimas ameaçarem uma precipitação, mas se recusava de todo o modo a ceder ao choro. No entanto, essa contenção lhe causava uma forte ardência. Miguel nunca tinha sentido tanta raiva e decepção por uma pessoa. Mas o que mais lhe causava indignação era saber que tinha se esforçado tanto para ajudar Conrado, e no final das contas descobriu que em nada ele tinha mudado. Estava decidido que a partir daquele momento ele não iria mais fazer nada além do que o trabalho voluntário, que enlaçava os dois, exigisse.

Ainda em estado choroso, Miguel resolveu que era melhor ver Christiane antes de voltar pra casa. Não estava a fim de encarar o pastor naquelas condições, com certeza ele iria enchê-lo de perguntas, principalmente depois da conversa da noite anterior.

Chegando a loja da prima, a gerente informou que Christiane só viria no dia seguinte, mas ela estava em casa. Melhor, pensou Miguel.

- Oi meu lindo, o que faz há essa hora aqui – Christiane o recebeu com um abraço e um beijo fraternal.

- Preciso conversar com você, Chris. Tem tempo? – Miguel retribuiu o cumprimento.

- Pra você? Todo o tempo que precisar – ela sorriu animadamente. – Vamos pra cozinha, estou preparando uma saladinha e frango grelhado. Finalmente resolvi entrar naquela dieta.

Miguel sentou-se atrás do balcão de mármore, enquanto sua prima lhe servia um suco de acerola.

- Pela sua cara a coisa é bem séria – começou a Christiane. – Mas me deixa tentar adivinhar. Conrado Lima Jadão.

- Antes que você pense qualquer besteira, eu vou logo me adiantar – Miguel tinha um pouco de irritação na voz. – Eu acreditei que seria capaz de ajudá-lo a ser uma pessoa melhor, mas me enganei completamente. Pensei que no fundo, havia uma vontade da parte dele de se acertar, tomar um caminho melhor. – sua voz estava pesada.

Miguel contou tudo que havia acontecido com muita revolta.

- Miguel, eu sei que a atitude dele depois de tudo foi decepcionante, mas, você não queria que uma pessoa como o Conrado mudasse da água pra o vinho como que por um milagre.

- Você não acredita que Deus pode mudar as pessoas?

- Talvez, se elas quiserem. Mas não existe mágica ou instantaneidade nisso, querido. – respondeu Christiane. – Mas, antes de tudo Miguel, você precisa saber por que quer ajudá-lo. Por que é tão importante pra você fazê-lo melhor.

- Porque esse é o papel de um cristão para com o seu próximo Chris.

- Tá. Agora deixa um pouco de lado a roupagem de Pastor Jr., e me diga, é esse só o motivo? Porque nunca te vi revoltado com alguém que você ajudou religiosamente e depois jogou tudo por terra, e isso já aconteceu algumas vezes.

- Eu sei aonde você quer chegar – Miguel se levantou irritado.

- Você pode negar pra mim, pra o seu pai, pra quem quiser, mas mentir pra si, é uma tarefa impossível – Christiane se pôs ao lado primo. – O sentimento pode até acabar, mas você vai continuar sendo quem é. Sabe por quê? Por que isso é natural. E o tudo que é natural é obra divina.

- Eu já vou indo – Miguel caminhou pra porta. A verdade doía.

- Espera! – pediu Christiane fazendo ele se virar. – Tudo bem. Então vamos dizer que seu interesse é puramente de “pescador de homens”, está agindo da maneira errada.

- Como? – Miguel franziu o cenho.

- Ninguém pode mudar ninguém pela sua própria força, mas pode inspirar o outro a uma mudança. – Christiane falou como se recitasse uma frase de algum pensador famoso.

Miguel abaixou a cabeça, tornando nítido o impacto da frase-conselho da prima. Nada disse. Saiu da casa dela com a cabeça cheia de interrogações e mais confuso do que nunca.

Quando chegou a casa estranhou algumas malas feitas, colocadas na sala. Ouviu a voz do seu pai falando apressadamente com Fernanda. Logo o casal apareceu, arrumado e trazendo algumas pastas.

- Que bom que você chegou filho, já estava preocupada – disse o pastor Oliveira beijando a testa de Miguel.

- Vocês vão aonde com essas malas? – perguntou o jovem.

- Seu pai recebeu um comunicado extraordinário, para uma reunião de pastores da microrregião na cidade vizinha. – respondeu Fernanda.

- Eu vou ter que ir com vocês? – perguntou Miguel.

- Infelizmente não – respondeu seu pai. – A reunião é só para pastores e suas esposas. Não gosto de deixa-lo sozinho, mas não se preocupe falei com a prima Maria e ela prometeu cuidar de você.

- Pai, eu não sou mais uma criancinha indefesa – Miguel sentou-se no sofá. – Já tenho 18.

- Madureza espiritual, essa é a idade que conta – declarou o pastor.

- Antônio, Miguel é muito responsável, e também só vamos passar dois dias fora – interveio Fernanda. – Tenho certeza que ele vai ficar bem.

- É isso mesmo Fernanda – Miguel esforçou-se para abrir um sorriso.

- Bem, precisamos ir, senão nos atrasaremos para o café fraternal – disse o pai de Miguel juntando as coisas.

Despediram-se e foram no carro do pastor. Era um modelo antigo, mas muito bem conservado, e realizava grandes viagens sem o menor problema.

Ficar sozinho seria uma boa, pensou Miguel, pelo menos teria tempo para por as ideias no lugar sem muitas inquirições de seu pai.

Depois de um banho longo, e uma boa refeição deixada por Fernanda, Miguel subiu para seu quarto e se jogou na cama. Quando sua cabeça tocou o travesseiro, sentiu uma coisa dura. Retirou um livro intitulado: “O lobo ataca as incautas ovelhas jovens”. Na primeira página havia algo manuscrito, era a letra do pastor:

“Leia, ore e reflita, pois o coração humano está desesperado pelo pecado”.

Miguel foi ate o sumário e viu diversos assuntos relacionados à juventude: Religião, Drogas, Família, Dinheiro, Castidade, Amizades, Homossexualidade. Seus olhos

arregalaram com o último tema. Mais que depressa ele folheou até o assunto desejado, e começou a ler, mas logo parou, pois apenas tratava de condenações e da cura espiritual da homossexualidade. Ele arremessou o livro para longe, e puxou outro de capa azul e tulipa dourada cravada, que estava sobre seu criado-mudo. O presente de Mateus. Olhando as fotos do garoto, ele se lembrou de como Mateus era revoltado assim que começou o tratamento contra o câncer. Ele teve e paciência, amor, compreensão, e isso fez com que o menino refletisse tais sentimentos. Será que deveria fazer o mesmo em relação a Conrado? Essa pergunta o levava a pensar no que Christiane havia dito. Não dava pra fingir pra si, Miguel sabia que havia algo mais, e que esse algo logo não caberia mais dentro dele.

Na mansão Jadão, Conrado estava arisco mais do que nunca e cheio de remorsos. Os olhos de Miguel cheios de raiva e decepção perseguiam seus pensamentos. Ele socava as paredes e chutava os objetos em seu quarto. Por que ele permitiu que Pezão dissesse aquelas coisas com que mais lhe ajudou nos últimos tempos? Medo. Essa era a resposta que sua consciência lhe dava. Medo de ser escarnecido pelos amigos. Medo de abandonar seu refúgio que era a raiva. Medo de aceitar de uma vez por todas, que ele queria estar com Miguel, abraçá-lo, conversar por horas a fio, sorrir com ele, estar sempre ao seu lado... A raiva já não era mais suficiente. O choro aliviava.

Conrado desamassou sobre sua cama uma folha de papel branca, suja e rota. Ele segurava na mão de Luiza, que segurava na mão de Miguel, como uma família. Era o desenho que a garota havia feito. O choro de Conrado aumentou. No canto inferior esquerdo havia algo escrito, que Conrado leu em voz alta:

- “Tenho medo do escuro, mas seguirei por esse túnel sem luz...”.

- “... se sentir sua mão quente proteger a minha, e prometer-me não sair do meu lado”. – Miguel leu o inscrito na última mensagem do álbum que Mateus o enviou.

Quando a noite virou dia, os dois companheiros de trabalho chegaram pela primeira vez ao mesmo tempo na oncologia infantil. Fitaram-se por algum tempo. Conrado sentiu-se tão bem por não mais encontrar raiva nos olhos do outro, e sim serenidade.

- Bom dia – ele disse pra Miguel. Trazia um violão nas costas.

- Bom dia – respondeu Miguel.

As crianças abraçaram os dois com a mesma intensidade, e para a surpresa do filho do pastor, Conrado retribuiu com vontade.

- Luizinha, eu vou colocar numa moldura o presente que você me deu – ele disse timidamente. Ele se sentia bem em fazer aquilo.

- Que bom que o senhor melhorou – respondeu Luiza dando-lhe mais um abraço.

- Tio Miguel, hoje vai ter música com som? – perguntou uma sardentinha chamada Liara.

- Claro que vai! – respondeu Conrado pegando o violão. Miguel apenas o fitava com espanto e curiosidade.

- Vou cumprir com o prometido – ele sussurrou para o filho do pastor. As crianças sentaram-se no chão arrastando Miguel consigo.

- Creep do Radiohead – disse Conrado, deslizando os dedos nas cordas. (http://www.youtube.com/watch?v=rMbNcdoFDRs).

Conrado era bom, muito bom. Voz e violão. Ele tinha nascido para aquilo.

O Jadão não tirava os olhos de Miguel. A letra da música era sua. Sua declaração para Miguel. Conrado balançava o cabelo, removendo charmosamente dos olhos, alguns fios. Mantendo a visão sempre fixa em seu objeto de contemplação: Miguel.

Miguel estava com a face vermelha e olhos arregalados ao máximo. Seu coração parecia que queria fugir de seu peito, pressionando suas costelas com violência. Ele não sabia o que pensar, dizer, fazer. Não conseguia deixar de olhar pra Conrado, deixar de beber da sua beleza e se perder naqueles olhos azuis. Inferno, pecado, religião. Nada daquilo era pesado naquele momento. Momento! Exatamente. Era só o momento que o importava. Que importava aos dois.

As crianças haviam adorado. Miguel havia se entregado aquela avalanche de sensações, que o puxava como uma atração magnética.

Depois da música houve o silêncio do pós, onde ninguém sente coragem pra dizer alguma coisa, pois não há nem uma palavra suficiente pra descrever o que só o coração entende. Conrado havia mais do que cantado, havia desabafado. E por mais que a sensação de erro tivesse lhe percorrido a espinha, ele não estava arrependido. Ato consumado.

Miguel saiu do Hospital Jadão fechado em seu silêncio reflexivo. Naquele momento era melhor não dizer nada antes de se pensar com calma. Conrado parecia compartilhar da mesma opinião.

À tardinha Miguel foi ver Christiane e lhe contou tudo. Ele precisava dividir com alguém o que estava sentido, e esse alguém só poderia ser ela. Ela, como sempre, despejou os seus exageros, mas ficou contente em ver o primo tão mais afirmado e não tentou pressioná-lo, às vezes é melhor deixar o outro arriscar seus passos por conta própria.

Após uma tarde com a prima, Miguel se despediu e voltou para a sua casa. Christiane insistiu em lhe levar de carro, mas ele disse que gostava de andar. Então foi embora.

Absorto nas muitas conjecturas, não percebeu quando um carro brecou o seu caminho, já afastado da casa da prima.

- Olha, olha, uma ovelhinha fora do rebanho – Pezão desceu do seu jipe ao lado de Azeitona.

- Eu não quero confusão com ninguém, agora, por favor, me deixa em paz e... Um tapa violento no rosto, dado por Pezão, calou Miguel.

- Cala a boca seu viadinho de merda, eu não mandei você falar nada! – Pezão o olhava com olhos de demônio. – Junta a florzinha do chão e joga no jipe, Azeitona.

Prontamente o capacho gordo agarrou Miguel pelos cabelos e empurrou no carro.

- O que vocês vão fazer comigo? – Miguel estava desesperado. Outro tapa. Dessa vez Pezão arrancou sangue da boca de Miguel.

- Eu queria na verdade fazer papa dessa tua cara de princesa, mas eu não quero queimar o Demolidor com o pai dele, então o serviço vai ser sem tanta violência, eu acho – Pezão soltou sua gargalhada horrenda ao lado de Azeitona. – Mas a brincadeira vai ser legal. – mais risos.

O carro de Pezão seguiu para fora da cidade, enveredando por um caminho deserto rodeado de um matagal interminável. Miguel soluçava, e tremia de medo.

- Os crentes afirmam que vão pra o céu, não é bicha? – disse Pezão. – Bem, hoje vou te provar que a coisa não é bem assim não. – Mais risos.

O carro avançava velozmente. A noite já havia caído em seu pleno breu. Em determinado trecho, passaram por uma placa feita de latão com os seguintes dizeres escritos com uma letra horrenda:

“BEM VINDO AO INFERNO”. Inferno era o nome do lugar onde os frigoríficos depositavam os restos inúteis de seus abates, além de animais mortos.

Um cheiro horrível começou a penetrar no carro que tinha os vidros semiabaixados. Miguel quase vomitou no banco, enquanto os outros dois faziam caretas, tampando o nariz.

O carro parou no acostamento, e Pezão arrancou Miguel com força, arremessando-o no chão.

Logo o rapaz de moicano, deu uma sequência de chutes na barriga do caído, medindo sua violência pra não causar muitas marcas, mas cuidando para que doesse bastante.

- Vamos começar a diversão – disse Pezão tirando uma navalha do bolso.

- Por favor, não faça isso – Miguel chorava e orava em silêncio, suplicando uma intervenção divina.

Pezão subiu em cima de Miguel, sentando em seu peito, enquanto prendia os braços dele com suas pernas. Ainda deu dois tapas e colocou a ponta da navalha na garganta do rapaz. Azeitona se deliciava com a cena.

- É hora do Juízo Final – sorriu Azeitona.

Pezão segurou com firmeza os cabelos de Miguel e começou a cortá-los com a navalha. Miguel se debatia, gritava, suplicava por Deus, enquanto o outro sorria com gosto, cortando os cachos dourados.

- Grita bichinha, grita! – Pezão se deliciava.

Trabalho concluído. Pezão se levantou e começou a fazer xixi na cara de Miguel, que aumentava o choro.

- Agora a cereja do bolo é com você Azeitona – disse Pezão enquanto juntava os cabelos de Miguel numa sacola.

Azeitona arrastou o rapaz pela perna e o empurrou em uma ribanceira rasa. Miguel caiu dentro de um poço pútrido de restos de animais em decomposição.

- Reza pelo purgatório – Pezão sorriu, olhando Miguel na lama podre.

O jipe saiu em disparada, fazendo o caminho contrário.

Conrado jantava com a família, quando seu celular tocou. Era uma mensagem de Pezão pedindo pra que ele saísse da mansão. Em silêncio e sem muita disposição, ele abandonou a mesa e foi ao encontro do outro.

- Meu firmeza! Vim mostrar a prova do cumprimento da minha promessa – disse Pezão ao lado de Azeitona, tocando firme na mão de Conrado. Estavam próximos ao muro da mansão.

- Do que você está falando? – perguntou Conrado.

- Te falei que ia provar o valor da nossa amizade – Pezão jogou uma sacola pra Conrado. – Abra e diga se eu não sou demais.

- Essa você vai gostar – riu Azeitona, na expectativa de ver a reação de Conrado. Conrado começou a tirar chumaços de cabelos cacheados. Ele se ficou pálido ao reconhecer aquele ouro capilar.

- O que você fez?! – ele gritou com Pezão. O coração de Conrado pulsava com violência. –Dei uma lição no viadinho crente que teu pai protege. Aquele otário nunca mais banca o engraçadinho com a gente – sorriu Pezão

- Onde está o Miguel?! – Conrado limpou o suor da testa muito nervoso. – Responde porra!

- Ele tá no Inferno agora – adiantou-se Azeitona.

Conrado sentiu o crânio ser esmagado pelas palavras de Azeitona.

- Vocês mataram o Miguel?!

- Claro que não Demolidor, jogamos a bichinha no carniceiro da cidade, o “Inferno”. – explicou Pezão.

Sem perder tempo, Conrado empurrou os outros dois que estavam em seu caminho, e correu velozmente rumo à garagem da sua casa. Pegou o seu carro e saiu feito um louco, ignorando as indagações de Pezão e Azeitona. Com os olhos em cascatas, torcendo para que Miguel estivesse bem, ele ia cantando pneu no asfalto, tendo o remorso e a culpa como suas companhias de viajem.

- Miguel, me perdoa – ele assuava o nariz em desespero. – Por favor, esteja bem.

A estrada parecia sem fim, assim como a angústia que Conrado sentia. O caminho que levava para o “Inferno” era deserto, poucos veículos passavam por ali, ainda mais durante a noite. Se houvesse alguma alma vivente pra aqueles rumos, boa coisa não seria.

- “É culpa minha. É tudo culpa minha” – ele repetia em pensamento, limpando o rosto com as costas da mão. Seu pé pisava fundo no acelerador, no compasso de seu coração em angustiado.

Miguel estava com meio corpo imerso na lama pútrida formada da decomposição. O odor era indescritível. O sufocava. O impedia de pensar.

- Socorro! – ele gritava chorando, tentando sair dali, mas parecia areia movediça – Meu Deus, por que o Senhor permitiu que isso acontecesse comigo? Não tenho te satisfeito o bastante? Eu sei... – ele começou a chorar convulsivamente. Estava preso apenas por um galho na ribanceira que ele segurava com muita força, enquanto sua outra mão tapava sua boca, na tentativa em vão de evitar que alguma coisa dali entrasse por esta. Seu cabelo sem cachos estava repleto de vermes brancos gigantescos, assim como seu ouvido – Meu Deus! – mesmo com a mão abafando a boca, o grito era estridente.

O silêncio era tão horrível quanto aquele lago infernal.

Miguel, sem obter resposta divina, parou o choro subitamente, e compreendeu que só derramar lágrimas não ia o fazer sair dali. Juntou o resto de força que tinha, e usou a mão livre para tatear a parede da ribanceira a procura de algo para lhe alavancara para cima. Não havia luminosidade, além de alguns vaga-lumes que vagavam por ali.

Depois de muito esforço, o rapaz começou a sentir umas pedras firmes, cravadas na terra. Forçou para ver se eram seguras e constatou que poderiam servir.

- Força Miguel! – ele dizia pra si, soerguendo-se.

Sua mão foi alcançando uma pedra atrás da outra, enquanto seu pé buscava apoio nas que iam ficando para trás. A alguns centímetros da “superfície”, ele escorregou o pé, ralando um joelho no atrito, mas não caiu.

- Calma Miguel. Você consegue... Ai – ele sentiu o joelho machucado arder. Empreendendo mais esforço, o corajoso rapaz conseguiu sair dali. Estava imundo. A lama podre cobria seu corpo, principalmente do tronco para baixo. Miguel começou a se arrastar pela estrada até que sentiu o toque áspero e morno do asfalto.

- Obrigado Senhor! Obrigado Senhor! Obrigado senhor – ele sorria e chorava ao mesmo tempo. Ali, na estrada principal, seria mais fácil encontrar ajuda.

Exausto, Miguel deitou a face no asfalto, esticando as pernas e os braços para lados opostos. Estava quebrado, humilhado, mas vivo.

Um lampejo de luz ascendeu no céu clareando por alguns segundos o local. O céu estava completamente tomado por nuvens carregadíssimas. Logo veio uma precipitação. As gotas grosas se chocavam contra seu corpo, removendo lentamente a nojeira de cima dele. Pela primeira vez ele provou de uma sensação que muitos desconhecem: sua mente estava completamente vazia. Nada lhe vinha em pensamentos. Um gélido e escuro vazio permeava sua alma.

Ele não tinha noção de horas. Não sabia quanto tempo já estava ali. Mas em um determinado momento, uma luz ofuscante atingiu seu rosto, isso fez com que seu corpo reagisse rápido. Miguel levantou os olhos e viu dois faróis apontados para ele. Alguém desceu com pressa do carro, e veio ao seu encontro. A chuva descia em cascatas.

- Miguel! Oh meu Deus! – ele reconheceu a voz, e logo viu o rosto do resgatador. Conrado estava desesperado.

- Não! Por favor, não faça mais nada comigo! – ele gritou em desespero, recuando o próprio corpo na direção oposta de Conrado.

- Eu não vou fazer nada de ruim com você, confia em mim – pediu Conrado, com a voz embargada. Ele estava revoltado com o estado deplorável de Miguel.

- Não! Eles te mandaram aqui pra terminar o serviço não foi? – Miguel impunha as mãos em direção a Conrado, em sinal de “Pare”.

- Quando aquele filho da puta do Pezão me disse o que tinha feito com você eu vim correndo ti procurar – ele tentava explicar – Eu jamais pediria para ele fazer algo assim.

Não mais agora, e muito menos com você. – Conrado se abaixou de cócoras mais perto de Miguel, que o encarava ainda receoso – Confie em mim? – Conrado estendeu sua mão pra ele.

Miguel, trêmulo, deu a sua lentamente.

- Confie em mim? – Conrado sorriu apertando a mão do outro.

- Confio – respondeu Miguel, tremendo os lábios por causa da chuva que apertava cada vez mais.

- Vamos sair daqui – Conrado o pegou no colo e correu para o carro. Só os olhos de Miguel permaneciam iguais. Era como se ele tivesse ido para uma luta de sumô em um chiqueiro, a diferença era que o cheiro era pior.

No carro nem uma palavra fora dita, mas Conrado cuidava de Miguel com os olhos. Ele estava deitado no banco do passageiro, encolhido.

Chegando à mansão, Conrado entrou subitamente assustando seu pai e Júlia.

- Como você sai sem dizer nada... – Luciano se calou quando viu Miguel nos braços de seu filho – O que aconteceu Conrado? O que você fez com Miguel?

O cheiro horrível invadia a casa. Júlia tremia perplexa diante da cena. Miguel estava acordado mais não dizia nada.

- Depois vocês me achincalham a vontade, mas agora me ajudem com ele – Conrado subiu as escadas até o seu quarto, entrando direto no banheiro.

- O que fizeram com você Miguel? – os olhos de Júlia se encheram de água. Luciano chegou atrás com uma maleta de Primeiros Socorros.

Conrado o sentou no Box, ligando o chuveiro com água quente. A lama podre deixava seu corpo rapidamente.

- Eu assumo – disse Luciano entrando e fechando a porta. – O que aconteceu Miguel? Ele só chorava.

- Vamos tirar essa roupa – Luciano começou a desabotoar a camisa dele. Miguel não reagiu.

Sem roupa, e encolhido como uma criança em defesa, ele foi higienizado pelo pai de Conrado delicadamente.

- Vai ficar tudo bem – o médico dizia, lavando o que sobrou do cabelo do rapaz. Miguel assentiu com a cabeça. Lá fora a chuva era violenta.

Ao fim do banho, Luciano foi cuidar dos ferimentos. Fez os curativos, e lhe deu alguns comprimidos para dor e para os nervos. De roupão, Miguel deitou-se na cama de Conrado e fechou os olhos, mas não dormiu.

- Agora o senhor vai nos explicar o que aconteceu direitinho! – Luciano descia as escadas, encarando Conrado, ao lado de Júlia, com muita raiva.

- Mesmo que não acredite em mim, vou contar como tudo aconteceu – disse o rapaz. Conrado relatou tudo que sabia, desde a discussão de Pezão com Miguel, até o “Inferno”.

- Esse delinquente deveria ir pra cadeia! – gritou Júlia indignada. – Como alguém é capaz de fazer algo ruim pra uma criatura como o Miguel?

- Amanhã vou começar com Luís e esse marginal vai ter o que merece! – vociferou Luciano – E quanto a você...

- Eu não tive culpa de nada! – gritou Conrado, mais desesperado do que irado.

- Sua consciência vai cuidar de você, eu não preciso dizer nada – Luciano subiu de volta ao quarto.

- Vou pedir para a empregada preparar um chá para ele – Júlia foi para a cozinha e deixou Conrado sozinho.

O filho de Luciano chorava baixinho, encolhido no sofá.

- Miguel! – chamou Luciano Jadão, entrando no quarto de Conrado. Miguel abriu os olhos assustado.

- Desculpa ter te acordado, mas acho que é melhor ligar para o seu pai, pois ele deve estar muito preocupado com sua ausência.

- Ele não está na cidade senhor – disse Miguel com a voz cortante.

- Então você vai dormir aqui – determinou Luciano. – Fique tranquilo. Está seguro agora.

Minutos depois Júlia entrou com um chá fumegante.

- Trouxe pra você meu anjo – entregou-lhe com uma dedicação materna.

- Obrigado – Miguel recebeu, sorvendo mais que depressa o chá de camomila.

- Você precisa de mais alguma coisa? – perguntou Luciano.

- Preciso apenas dormir e esquecer esse dia – respondeu Miguel.

- Saiba que isso não vai ficar impune – falou Júlia, tocando em seus cabelos. Estavam horríveis. Também pudera, cortados a canivete.

Luciano lhe deu um pijama de Conrado, que ficou grande no corpo dele, mas era confortável.

- Boa noite meu filho. Qualquer coisa não hesite em nos chamar – disse Júlia beijando sua testa.

- Boa noite Miguel – também desejou Luciano.

Miguel se jogou na cama enorme de Conrado e caiu em um sono profundo. Os remédios e o chá felizmente deram efeito.

Já muito tarde, Conrado entrou em seu quarto e foi tomar um banho. Vestiu-se e colocou um colchonete no chão ao lado da cama, onde o outro respirava calmamente.

Conrado não resistiu e se aproximou lentamente da cabeceira de Miguel. Ficou vigiando o sono dele. Dormindo ele lembrava mais ainda um anjo. Era lindo, sereno e doce. Conrado tocou as pontas dos dedos no cabelo de Miguel, descendo o toque pela face até chegar a suas bochechas, ali ele fez um carinho demorado, com muito cuidado e sutileza para não acordá-lo. Seus dedos seguiram para os lábios de Miguel, Conrado fazia o contorno como se pincelasse. Uma vontade louca de tocar seus lábios naqueles lábios lhe subiu a cabeça. Ele se abaixou, sentindo a respiração de Miguel se unir com a sua, e direcionou seus lábios sedentos ao encontro dos lábios do outro. Quando estava apenas a alguns centímetros para beijá-lo, Miguel se mexeu e virou para o outro lado. Conrado se afastou rapidamente, como se sua razão, antes perdida, houvesse retornado. Cobriu bem Miguel, e beijou-lhe a mão. Antes de deitar, ele ainda olhou para o quadro de sua mãe e disse em pensamento:

“Cuida dele pra mim”.

Na manhã quando Miguel acordou, sentia o corpo todo dolorido, mas estava bem. Era como se os horrores da noite anterior tivesse caído para segundo plano, por uma intervenção divina.

O colchonete em que Conrado dormira estava desarrumado e vazio.

- Bom dia – entrou Júlia com uma bandeja cheia de gostosuras.

- Bom dia – respondeu Miguel com seu sorriso de costume.

- Está se sentindo melhor?

- Sim – ele respondeu, se sentando na cama.

- Eu liguei para sua prima Christiane, achei melhor não importunar o pastor – Júlia pousou a bandeja na cama.

- Ela deve ter ficado muito preocupada – suspirou Miguel.

- De fato! Ficou com você até agora pouco, mas disse que era melhor não acordá-lo – disse Júlia. – Ela trouxe roupas, escova de dente, coisas pessoais para você. Eu pus tudo no banheiro.

Miguel tomou um banho bem demorado, vestiu-se, e voltou para junto de Júlia. Em alguns minutos devorou todo o café que ela havia trazido. Nunca havia sentido tanta fome.

- Você é muito forte – observou Júlia com olhos encantados. – Passar por tudo aquilo que passou, e continuar assim...

- Assim como? Faminto – eles riram.

- Não. Continuar bem – explicou Júlia.

- Eu sei que você não acredita na Bíblia – ele sorriu levemente. – Mas tem um versículo que me ajudou muito naquele lugar, e até hoje: 2 Coríntios 12:10 – “...Quando estou fraco então sou forte”. É nas fraquezas e na dor, que descobrimos que podemos construir grandes coisas a partir das cinzas da destruição.

- Eu acredito na sabedoria bíblica – rebateu Júlia. – Só não acredito nas doutrinas humanas criadas sobre elas, para interesse pessoal.

Eles ficaram apenas se olhando, com uma serenidade compartilhada.

- Você está precisando de uns ajustes nesse cabelo meu amigo – Júlia bagunçou o cabelo de Miguel. – Eu posso dá um jeito se você quiser.

- Você entende de cortes de cabelo?

- Foi assim que eu paguei minha faculdade – ela sorriu. Júlia pegou uma tesoura e começou a trabalhar.

- Queria perguntar algumas coisas – disse Miguel, sentado de costas apra Júlia, enquanto ela tesourava seu cabelo.

- Pergunte – ela concordou.

- O que você pensa sobre algumas questões da Bíblia.

- Como, por exemplo?

- É... As condenações, os pecados graves, práticas impuras – Miguel era vago.

- Entendi – falou Júlia percebendo a dificuldade de Miguel de ser específico. – Em primeiro lugar Miguel, é importante que você saiba algumas coisas a respeito das traduções bíblicas. Nunca te falei isso por que não queria deixá-lo confuso em nossas conversas sobre religião, mas já que está perguntando, creio que posso expor alguns fatos. A Bíblia é um livro com alto teor cultural. As traduções são apenas uma aproximação do que o escritor queria de fato expressar. Já que segundo a linguagem, não existe uma transição de idioma perfeitamente correspondente. Existe uma vertente da filosofia chamada hermenêutica, onde se interpreta o significado das coisas e das palavras. Acredite, não existe um consenso em relação ao significado real de muitas passagens bíblicas. O homossexualismo, por exemplo.

Miguel sentiu como se Júlia estivesse lendo seus pensamentos.

- Malakoi e Arsenokoitai, essas são as palavras que supostamente se referem ao homossexualismo – continuou Júlia. – A tradução literal significa “mole”, “macio”. Mais muitos tradutores, a luz de sua própria razão e de estudos incompletos, deduziram o significado para pervertido e efeminado. Só que efeminado naquele tempo, era um homem que tinha muitas mulheres.

- Então, você está afirmando que a Bíblia não condena a sodomia?

- Sodomia? – Júlia riu – Sabia que esse termo não pertence ao original bíblico? Foi criado por São Tomás de Aquino e difundido como termo da Bíblia. E sodomia significa perversão sexual tanto homossexual como heterossexual. Miguel eu não sou uma antirreligiosa, mas não posso aceitar uma afirmação que foi colocada na minha cabeça sem eu ao menos ter o direito de contestar. Veja, naquele tempo se uma pessoa quebrasse a lei do sábado ela deveria ser punida com a morte.

- Eu sei.

- E hoje, em nossa cultura, isso seria aceitável?

- Seria um crime hediondo – concordou Miguel.

- Exatamente! Mas para eles era aceitável, pois a cultura os influenciava, assim como influencia o mundo até hoje – Júlia havia terminado o corte. – A Bíblia é muito clara quanto à perversão sexual. Há indícios de que Sodoma e Gomorra foram destruídas pela ambição e a orgiolatria e não pelo ato homossexual em si como as religiões ensinam. Existem muitas dúvidas com relação às traduções dos originais bíblicos. Mas se Deus é amor, como eu posso acreditar que entre duas pessoas que se amam não há algo divino? Se eu acredito que Deus é amor, como eu posso achar que ele poria características em alguém, para depois condenar por algo intrínseco a natureza deste? Perguntas são muito perigosas, destroem doutrinas e derrubam templos.

Miguel ficou perplexo com tudo o que ouvira. Poderia ter sido tão cego durante esse tempo todo?

- Nossa! Você ficou muito bonito de cabelo curtinho – disse Júlia. – Está com o rosto em evidência.

- Gostei também – ele concordou olhando para o espelho.

- Bem, meu amor, eu vou ter que ir, minha agenda está cheia hoje – disse Júlia.

- Eu vou com você.

- Não. É melhor você descansar.

- E deixar meus bebês sozinhos? Não. Eles são meu revigoramento – Miguel foi firme. Os dois desceram, e encontraram Conrado sentando na sala.

- Onde está seu pai? – perguntou Júlia.

- Ele já foi – respondeu Conrado – Como você está Miguel?

- Vivo – ele sorriu um pouco. – Estou melhor dentro do possível.

- Eu quero que você saiba que eu não tive...

- Eu disse que confiava em você, lembra? – Miguel o interrompeu.

- Lembro – Conrado se agitava muito, ele queria dizer tantas coisas para ele.

- Então vamos – Júlia pegou sua bolsa.

- Você se importaria de ir comigo Miguel? – perguntou Conrado.

- Não sei se é uma boa ideia – interveio Júlia.

- Não se preocupe eu não vou deixar nada acontecer com ele – garantiu Conrado.

- O que você acha Miguel? – quis saber Júlia.

- Tudo bem – ele concordou.

- Olha lá o que você vai fazer Conrado – falou Júlia – Estou saindo.

Miguel e Conrado seguiram para o carro do último. Antes de saírem, Conrado pegou o celular e fez uma ligação.

- Ei, preciso ver você daqui a uns 10 minutos – ele disse. – Me encontra na Rua Renascer. Tchau.

- Quem era? – perguntou Miguel com receio.

- Você vai descobrir – respondeu Conrado – Ficou muito bem de cabelo curto.

- Obrigado

Conrado seguiu para o endereço mencionado no celular. Era um lugar pouco movimentado, com muitas residências de muro alto e nem um ponto comercial, ou seja, poucas pessoas a vista.

- Não vamos para o hospital? – Miguel estava nervoso.

Conrado ficou em silêncio, parando o carro perto de um jipe verde estacionado.

- Desce! – ele olhou para Miguel.

- O que você vai fazer?

- Já disse que você vai ver, agora obedeça – Conrado estava autoritário.

Os dois desceram e caminharam rumo ao jipe. Miguel começou a sentir vontade de chorar quando reconheceu o veículo.

- Fala aê Demolidor! Por que me acordou tão cedo? – um rapaz de moicano saiu do jipe acompanhado de um gordinho.

- Vim bater um papo com vocês, Pezão – disse Conrado, apoiando as mãos na cintura.

- Algum problema Conrado? – perguntou Azeitona.

- Ah, ele trouxe o viadinho pra gente se divertir mais – sorriu Pezão. – Ele até que ficou parecendo homem com esse cabelo, né Azeitona?

- Verdade – sorriu Azeitona.

- E então meu firmeza, o que você manda? – perguntou Pezão. Miguel recuava pra trás temendo o que seria feito com ele.

- Vamos nos divertir um pouquinho – sorriu maliciosamente Conrado.

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Comentários

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A maior invenção da igreja foi o inferno. Só assim conseguiu escravizar e destruir tantas almas!

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Não tem problema zé carlos.Sou eu mesmo. Eu não sei se vocês sabem, mas uma vez que a gente escolhe um apelido na Casa dos Contos, ele se torna nosso sempre. Outra pessoa nunca poderá usar o meu apelido, o site não deixa.

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Egeu?? Eu amo Egeu!! Aquele mistério todo, desenhos, perfumes... Perfeição!! Bom, tu ta ligado, que "Asfalto" é comentado e famosissimo aqui na CDC né? Não li a primeira vez, mas ouvi muita coisa sobre ele. Eita que pezão, vai ter o dele...

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Se vc é o Lord D. mesmo tenho que lhe dizer que andei mandando algumas copias do ASFALTO, pois alguem aqui no CDC andou procurando seu conto e eu como tinha, mandei copias

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LORD D. desculpa o meu outro comentário não tem nada haver como esta a sua vida com o CONRADO

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E como esta a sua vida com Guilherme e que fim levou a FANTASIA

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Tinha que ser um Lord mesmo, um conto maravilhoso, estou encantado e adorando, parabéns,

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Incrível! Que saudades desses dois. Posta logo a continuação, viu?! Você é fantástico! Abraços.

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Como assim esse conto já foi postado, e eu não tinha lido essa perfeição? EU TO CHOCADO :o

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Huhul q bom q voltou espero q poste tbm o entre primos...

E quem sabe vc naobse anima e posta novas estórias pra gente em ?

Rsrsrs

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Esse%20conto%20é%20Maravilhoso(eu%20não%20tinha%20lido,%20mas%20já%20me%20apaixonei%20por%20"ele")...%20Muito%20curioso%20"ver"%20o%20que%20irá%20acontecer,%20não%20demora%20por%20favor...%20Bjos%20e%20%20parabéns%20viu%20rsrs.

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Ainda bem que voltou.

Pensei que tinha abandonado a cdc.

Adoro asfalto, e entre primos vc tambem vai publicar denovo?

Continua logo.

Ate mais

Bjs.

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Caracaaa!!!!Que capitulo mais tenso,triste,emocionante,envolvente e é claro PERFEITO!!!Não esperava outros capitulos ainda hoje mas voçe me surpreendeu.Voçê é o autor do conto??Muitos parabens e Volte Logo.S2S2S2S2

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Olá pessoal! Muita gente está perguntando se este é o conto "Asfalto" que foi publicado há quatro anos. Sim! É este o conto. E sim, também! Sou o Lord D.. Vou republicar toda a história. E depois vou republicar "Egeu".

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