Bicho Homem

Um conto erótico de Lima
Categoria: Grupal
Contém 1452 palavras
Data: 01/10/2015 23:49:04
Última revisão: 04/10/2015 04:10:51

“Quem via quem?” o mundo que me via, oras! E a partir do reflexo de suas enormes pupilas eu me via. É importante frisar o quão importante é a compreensão de qual perspectiva é minha visão, porque sem ela eu parecerei adâmico, coisa que não sou e não somos.

Eu sempre convivi com bichos, meu corpo era coberto da mesma lama que cobria os porcos. Era divertido sujar-se de lama na infância, eu submergia quase todo o meu corpo, exceto a cabeça, e esperava que os porcos se aproximassem, logo em seguida eu saltava da lama e eles todos corriam desesperados. Meus pais me batiam e falavam para mim que eu era um porco, os vizinhos sorriam e sempre falavam alguma piadinha me associando a um suíno. Era assim a perspectiva do mundo sobre mim, e foi essa perspectiva que me orientou.

Quando cresci parei de “brincar de laminha”, como eu costumava alcunhar a brincadeira. Mas continuei sendo Lúcio o Porco, não por continuarem com as gozações, mas porque eu me sentia assim, lembrava das brincadeiras com os porcos como brincadeiras entre primos.

Eu nunca quis namorar, achava totalmente irrelevante, porque eu não preciso estar dentro de um relacionamento pra transar. Não preciso nem que seja um ser humano, ou um ser vivo, ou um objeto. As formas de gozar são metafísicas. Então voltando ao raciocínio, namorar sempre foi facultativo, nunca fiquei preocupado com a filha do vizinho ou com o vizinho, embora fossem “transáveis”.

Eu me preocupava, e muito, era com a minha metamorfose. Eu percebia que o meu corpo branco estava ficando cada vez mais rosado, meu tom rosado das bochechas não era mais exclusivo das bochechas; os meus cabelos caíam cada vez mais; eu engordava a olhos vistos; os meus olhos se distanciavam cada vez mais um do outro e minhas orelhas ganhavam um formato de uma pétala. Eu comia demais, cada vez mais, inclusive comia a comida que sobrava no prato de quem comia ao meu lado. Ninguém nunca reclamou, embora eu falasse que eu estava virando um porco.

Depois veio os sons, as emissões que cada porco faz para outro porco, a língua dos porcos. Eu não traduzia os sons, eu pensava através dos sons, como se pensa em inglês ou em português. Era fato!, eu estava no processo final da metamorfose. Era um grande alívio, uma sensação de união e de graça. Eu já conversava com eles, os porcos são seres bastante sensíveis, educados, precavidos e até humildes, pois para evitar as queimaduras do sol, banham-se na lama, a qual gruda em seus corpos como um protetor solar potente e natural.

Eu comecei a perceber que algumas pessoas estavam querendo me afastar do meu designo, elas queriam me prender numa gaiola para uma exposição, ao estilo freak show. E não era peixe pequeno não, era gente BIlionária, eu ouvia o quanto eles lucrariam comigo e triplicariam suas fortunas. Depois de ganharem bastante grana eles iriam me vender para um laboratório e aí eu seria estudado.

Um dia acordei sentindo uma coisa estranha, o contato com a cama me proporcionava uma sensação diferente, tanto na textura quando no modo em que eu sentia eu meu corpo pesar sobre a cama. Quando tentei pôr os pés no chão “não!” eu tinha patas, eu havia aceitado o meu destino e estava feliz com ele, mas me contradizia pois tinha medo daquilo tudo. Não precisei nem aprender a andar como um quadrúpede, veio naturalmente, fui ao galinheiro.

Tentei falar com as galinhas, mas elas tinham uma língua própria, assim como o gato, o rato, os golfinhos, etc. Fui pra lama esperar algum porco aparecer, apareceu um javali, eu falava sobre o plano maquiavélico que algumas das pessoas mais ricas do mundo queriam colocar em prática. Mas eu sabia que ele seria grosseiro, javalis se acham demais!

Uma hora apareceu um monte de homem vestido de branco, eu sabia que era pra me levar para um moderno freak show. A ambulância era um disfarce, eles estavam fingindo que estavam levando um convalescente ao hospital, quando na verdade estavam me sequestrando. É isto que se faz ao privar de alguém a sua liberdade, sequestro. Os familiares não fizeram nada que não fosse olhar, um olhar de desespero, e não de alento.

Indo na direção da intuição, gritei pelos porcos... em vão. O javali ria da minha cara e eu ruminava o porquê de não levarem ele, é só porque ele nasceu javali? Só por ter o status de javali ele pode sê-lo e não é sequestrado?

A raiva era tão grande que quase escapei dos cinco (cinco ou seis) homens que tentavam privar de mim a liberdade, porém recebi uma injeção na perna e zonzo fiquei. Sem o direito de sequer questionar o motivo de estarem fazendo aquilo, sem o direito de transitar pelas ruas como um bandido, mas eu só era um porco.

Levaram-me para um spa, que bom auspício! Mulheres de branco serviam comprimidos coloridos como balinhas de criança, as pessoas eram tão felizes que riam sozinhas, e outras tão falantes que até sozinha conversavam. A priori, gostei dos frequentadores do ambiente, no entanto, eu sabia que aquele spa era uma tentativa de me engabelar com comida farta e noites tranquilas de sono. Ah, e que sono! Aqueles confeitos davam sono.

Um jovem vestindo um jaleco veio falar comigo nos primeiros dias, na verdade ele gritava muito, ele queria as respostas que ele queria ouvir saindo da minha boca, como podem querer controlar meu pensamento e ditar o que devo pensar? Quanta pretensão! Esqueci de contar que as balinhas eram mágicas, ao tomá-las eu voltava a ser humano, mas o mundo se transformava junto a minha anatomia. O azul de céu virava cinza, o canto dos pássaros pareciam gritos de desespero e dor de quem repete o mesmo som, preso a um canto, uma ideia, uma frase, uma mesma mensagem.

As mulheres de branco eram chatas quando queriam, e parece que queriam sempre, pois mudaram o conceito de mulher dos doces para bruxa de João e Maria. Eu só estava esperando o dia em que a exposição começasse, pensava no quanto iriam ganhar grana e toda vez que eu reclamava disso para alguém, davam-me mais doces e de cores diferentes. Tinha dias que eu mal andava de tanto comer doces, meus músculos ficavam paralisados e meu pescoço parecia abrigar o Plâncton do Bob Esponja, pois a minha mandíbula era coordenada por algo além de mim, como se você estivesse mastigando.

Os hóspedes do spa gostavam muito de cigarros, eu não entendia bem o porquê. Até certo ponto eu nunca soube de nada que acontecia ali, mas depois descobri dos truques e da maldade envolvida no lugar. Havia uma mulher acusada de ter matado o marido e suas duas filhinhas gêmeas, ela era educada, inteligente, calma e taciturna, uma verdadeira sábia! Ela me ensinou tudo sobre qualquer coisa que exista no spa, a começar pelo nome, que ela disse ser “hospício”, uma espécie de hospital que servia para acumular os produtos que não deram certo para o sistema.

A assassina me disse que eu deveria fugir com ela, que depois iriamos para a sua casa em Campos do Jordão, e que eu teria um cercado próprio. Mas dentro daquele hospício eu não conseguiria voltar a ser eu, seria apenas o humano que eles queriam, então eu seria seu refém voluntário para a nossa fuga. A gente até tentou fugir, mas não deu certo, acabei sendo ferido em vão. É que se ter o poder sobre um, implicar na morte de um outro, eles não ligam.

Eu vomitava todos os doces que me davam, fui voltando a forma antiga. Via os outros se transformarem em bichos e logo estava em meio a uma fauna. A assassina uma gata, as enfermeiras eram hienas, os médicos eram baratas, os pacientes representavam a diversidade animal, até tinha jacaré.

O problema era que cada bicho falava uma língua, assim a gente não se unia contra o imperialismo das baratas. Alguns bichos tinham a habilidade de ser outro bicho, isso quem decidia era o próprio bicho diante da situação, a dupla-face animal humanizada servia para falsidade e ganhos mesquinhos, não para sobrevivência.

Com o tempo ali, eu fui esfarelando até me tornar um monte de pó. Vários “eus” entravam em narizes diferentes, fazendo uma longa viagem pelos internos dos corpos, de maneira simultânea, como vários televisores ligados no mesmo canal. Os narizes mostram o mesmo canal, dão a mesma sensação e passam a mesma mensagem.

Uma hora eu cansei, acabei voltando a forma humana (de nascença, não a humanizada) ainda no começo de uma narina. O nariz que me sugava quebrou, eu estava livre, andei e fui...

Siga a Casa dos Contos no Instagram!

Este conto recebeu 0 estrelas.
Incentive Look at me a escrever mais dando estrelas.
Cadastre-se gratuitamente ou faça login para prestigiar e incentivar o autor dando estrelas.

Comentários

Foto de perfil genérica

Que foda! Kafka, Foucault, Hobbes. Cara, esse conto é foda. Qual teu email pra gente trocar ideia?

0 0
Foto de perfil genérica

Que foda! Kafka, Foucault, Hobbes. Cara, esse conto é foda. Qual teu email pra gente trocar ideia?

0 0
Foto de perfil genérica

Que foda! Kafka, Foucault, Hobbes. Cara, esse conto é foda. Qual teu email pra gente trocar ideia?

0 0