O Estivador I

Um conto erótico de Irish
Categoria: Homossexual
Contém 1430 palavras
Data: 16/08/2015 18:54:24

1944

Aos finais de tarde claros e sem chuva, Elias e eu gostavamos de nos sentar proximo ao desembarcadouro de cargas do porto, num pier menos movimentado. Levavamos nossos cadernos de desenho, os lapis e giz pastel, e ficavamos retratando a intensa paisagem litoranea da nossa querida Santos.

- Se eu colocar metade de um saco daqueles na cabeça, desabo na hora! _ disse Elias, observando por um momento os estivadores naquele duro trabalho de transportar a sacaria pesada para dentro dos navios atracados; mesmo um pouco longe, dava para ver que suavam em bicas, molhando suas camisas rotas, de tecido barato.

- Mesmo se sua perna fosse boa? _ perguntei.

- Mesmo assim _ ele sorriu, coçando a cabeça por baixo da boina cinza, tao gasta e esburacada como um sofà velho.

"A perninha nao atrapalha, nao", pensei com um sorriso, apagando uma linha do desenho. Bom, e dai que ele mancava um pouco? Nao era culpa dele. As vezes, se tentava correr, ele caia, porem eu achava que correr nao era algo assim tao indispensavel na vida de um garoto de dezenove anos... Isso era so' um detalhe e eu gostava dele assim mesmo, manco, nervoso, com oculos pequenos e redondos e cabeleira espatifada. Por baixo da roupa furada, dos sapatos velhos demais, do cabelo emaranhado, ele era bonito, era meu, e com perna torta e tudo conseguia fazer amor direitinho.

Entre pausas de seu trabalho, os estivadores riam entre si, em gargalhadas altas e grosseiras. A maioria deles habitava nas moradias miseraveis ao redor do porto, e aos finais do expediente frequentavam casas de prostituiçao e bares. Alguns eram fabulosos nos seus fisicos trabalhados pelo serviço duro, viris, homens no sentido exato da palavra; muitas vezes eu gostava de observa-los pois me fascinavam, me excitavam. Elias ficava possesso quando percebia.

- Meu Deus, ele falta salivar por causa desses brutos, desses bebados vadios! _ dizia, colerico, mexendo nervosamente nos oculos _ Vá atras deles, Afonso! Vao encher sua boca de socos e nao daquilo que voce gosta.

Em nossas brigas, que infelizmente eram frequentes, ele sempre arranjava um jeito de me ofender e rebaixar. Me chamava de "bicha", "maricas", "puto sem vergonha", em meio à acusaçoes paranoicas de traiçao de minha parte; ele tinha ciumes ate do meu chefe, o gorducho do Seu Bento. As vezes a discussao era feroz, ele era mais alto, tentava me bater, mas por causa da perna torta acabava se desequilibrando; se eu quisesse poderia socar a cara dele, porem nunca tive coragem, me parecia algo tao covarde! Acabava fugindo de casa, so' voltava à noite, ficava na rua ou na praia, tentando nao chorar. Mais tarde ele falava que me amava, e quando me penetrava na escuridao das noites mornas, desengonçado por causa da perna, afirmava em arquejos que eu era "delicioso". Uns dias depois, entretanto, falava que quando obtivesse seu diploma de Direito voltaria para S. Paulo, para se casar com uma moça "boa" e levar uma vida normal. Vida normal? Com aqueles olhos compridos para cima do jornaleiro e para o filho mais velho da vizinha? Dois bonitoes, era verdade, o manquinho nao tinha nada de bobo. Disfarçava o interesse, mas eu notava muito bem.

Sem me consultar, hà alguns dias ele me incluiu em seus planos. Era uma tarde de domingo quente, as janelas de nosso casebre estavam fechadas para evitar as crianças bisbilhoteiras da vizinhança, que do lado de fora corriam numa algazarra com cachorros e apitos. Tinhamos acabado de fazer amor, e Elias coçava devagarinho meus cabelos umidos, abraçando-me ao seu peito.

- Branquinho... _ ele me chamou _ Quando eu me casar, quero que voce vá morar comigo.

Apesar da bizarrice da situaçao, aceitei depressa para nao perde-lo totalmente. Porem, sentindo o calor suado de sua pele sob a minha, tive uma impressao subita e dolorosa de que aquilo nunca aconteceria.

- As asas da sua gaivota nao estao bem acabadas _ disse Elias de repente, tirando-me das minhas lembranças e apontando meu desenho.

Ora essa! Eu estava cansado, trabalhei o dia todo naquele almoxarifado quente e sufocante, queria agora relaxar olhando o sol se por, matizando o oceano de cor de brasa. As asas da gaivota pouco importavam. Ainda assim comecei a defini-las devagar, lembrando de outras coisas.

"O garoto manca, mas e' bonito", foi o que pensei quando me mudei para um quartinho alugado na casa vizinha a dele, naquela rua pobre do porto. Isso foi em 1942, e eu estava com dezessete anos, recem-chegado de Maringá onde deixei minha familia e sai em busca de coisa melhor em terras paulistas; andei por Sorocaba, Ourinhos, S.Paulo e depois para Santos, esperando progresso na cidade. Elias morava sozinho, estudando para ser advogado, vivendo miseravelmente com uma pensao que seus pais mandavam; para dividir despesas, me chamou para morar no casebre com ele. Bem, ele nao era o que se chamava de um rapaz asseado, e o chao de sua casa parecia conter um tipo de grude que mesclava poeira e gordura, o qual se colava à sola dos sapatos; os lençois das camas, de brancos, estavam enegrecidos devido à sujeira, bem como a grossa poeira que se acumulava numa camada fofa sobre os moveis e livros. Coloquei um pouco de ordem nas coisas, e seguindo meu exemplo talvez por vergonha, Elias passou a tomar banho todos os dias.

Demorei a perguntar porque ele mancava, demorei a beija-lo. A poliomelite era a causa da quase paralisia de sua perna, convivia com isso desde os sete anos, e nao teve vergonha de me contar; já o beijo ocorreu numa noitinha de inverno em meio a um vinho barato e nossos desenhos, uma paixao em comum. Havia uma certa atmosfera tensa entre nos havia dias, nunca falavamos em mulheres, e varias vezes o flagrei me olhando como quem estava hipnotizado por alguma coisa. Eu que nao era bobo, que me divertira à sorrelfa com dois primos a infancia toda, captei a intençao do moleque e parti para o tudo ou nada. Ele correspondeu num dia, recuou no outro, chorou parte da noite (dividiamos o mesmo quarto), dormiu abraçado comigo na outra vez, e afinal se entregou no dia seguinte, de corpo e alma. Virgem, tive de ensina-lo sobre tudo, a perna rigida atrapalhava e as molas do colchao velho rinchavam como um carro de boi. Ele ficou em duvida se ejaculava dentro de mim ou nao, mas acabou fazendo-o por nao saber segurar a tempo, e tive de explicar que nao havia nada demais naquilo, era apenas um detalhe. "Voce e' bonito demais pra mim, Afonso", disse ele nessa noite, vestindo a cueca, muito constrangido: "Tenho medo de voce estar so' zombando de mim". Nao, eu estava apaixonado por ele. Afirmei isso varias vezes, e demorou para ele se convencer. Quando bem cuidado ele era lindo, porem tinha um gosto tenebroso para o desleixo, a falta de higiene, o pouco caso com a aparencia. Que culpa eu tinha disso? Mesmo vestindo roupas velhissimas, eu nao cheirava mal como ele, cortava sempre as unhas, penteava os cabelos, me mantinha bem na medida do possivel. O sol forte da costa nao conseguia bronzear minha pele, no maximo avermelhar um pouco meu rosto; eu era muito branco, de cabelos louros cacheados e olhos azuis aguados que nao suportavam a claridade alvar da areia batida de sol da praia. Uma aparencia herdada de meus avos alemaes, e que sinceramente me orgulhava.

- Antes que escureça, quero terminar o desenho do navio _ disse Elias me trazendo de volta à realidade _ Depois, poderemos colori-lo em casa.

À medida em que os estivadores terminavam seus trabalhos, passavam a falar mais, a rir alto e provocar os companheiros aos gritos e palavroes. Era inevitavel nao olha-los. Um deles, em particular, sempre me chamou a atençao: era forte, alto, fumava sem parar. Tinha um aspecto de espanhol, moreno, de barba cerrada e cabelos negros. Nao sabia seu nome, porem volta e meia ele olhava para onde Elias e eu estavamos, parecendo curioso.

- Miguel! _ gritou um mulato alto para o sujeito _ Nao vai conosco à taberna hoje?

- Hoje nao! Estou cansado e de bolso seco! _ respondeu com um gesto impaciente.

"Miguel, Miguel, Miguel...", fiquei pensando, olhando para o desenho, depois para o mar cor de fogo, e por ultimo para ele, parado perto da rampa de desembarque de cargas, fumando despreocupado enquanto olhava o oceano. Percebeu-se observado por mim, me encarou por um momento e a impressao que tive foi a de que meu coraçao inchou e parou de repente.

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Oi! Espero que curtam esse novo conto :)

Abraços!!

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Comentários

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Ai ai ai... sera q vai rolar traição?? Acho que sim rsrsrsrs

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Nunca tive nenhum contato com os seus conros, esse vem a ser o primeir que leio, mas devo admitir que prendeu a minha atenção do começo ao fim. Espero pelo próximo. Beijos, rruthmaria2@gmail.com

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De cara já gostei. Vou acompanhar, com certeza!

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