Viva e deixe(-se) morrer

Um conto erótico de Piet
Categoria: Homossexual
Contém 1019 palavras
Data: 20/05/2015 23:27:24

Acordei, um pouco tarde para o dia e idem pra vida. Numa cama tão estranha quanto homem ali deitado, eu precisava de uma droga ou então socaria aquele rosto nojento. Tinha acordado com o ovo virado; sem paciência pra explorador cínico. Toda a compleição da cena onde eu tinha me inserido, estava me incomodando: a brancura do quarto, a textura da cama, a maciez estranha dos lençóis, aquele porco roncando, minha situação ali. Depois ele acordaria, ligaria e desligaria a luz umas dezenas de vezes, conferiria minha grana umas centenas de vezes e eu iria pegar um metrô lotado de gente em pleno horário de almoço. Gente indo trabalhar, vendedor ambulante de quinquilharias, mulheres voltando de posto de saúde, adolescentes fazendo baderna pra tentar mostrar que vale mais que a maioria, isso me dá tédio e desespero, desespero pra ficar longe.

Conquanto eu tenha dormido pra caralho, ainda assim eu tinha sono, eu queria sair dali direto para o meu quarto, sem perpassar por aquelas pessoas, por essa sociedade de merda. Pensei um pouco no sacrifício, vi que não precisava passar por ele, pedi então que o cara me deixasse ficar mais um dia. Óbvio que eu ficaria (e suportaria) a base de drogas, mas que seja! Pelo menos eu estaria em uma bela casa, com uma geladeira cheia e bebidas de qualidade disponíveis.

Ele deixou, “ele não é tão mau”, pensei. Depois desse pensamento frases de autopunição brotaram na minha mente como ervas daninhas, “seu mal-agradecido”, “como você é cruel em relação a ele”, coisas do tipo. Fiquei pra baixo, pedi logo a primeira droga e ela veio em copinho de café, eram quatro comprimidos brancos, pareciam ser a mesma coisa, a mesma droga; sem perguntar nada eu tomei. Depois já não havia punições interiores, nem asco pelo cliente ou pelo “resto do mundo” que se aglutinava nos metrôs. Eu pensava muito rápido, não conseguia concluir nada sem engendrar num novo pensamento e daí suceder a uma explanação de ideias infinitas. Era bom, mas eu ainda não estava como queria, eu queria sair do corpo, ficar fora um pouquinho. Peguei uma vela, acendi e fiquei brincando com o fogo e tentando queimar aos poucos a minha mão e meu antebraço, mas foi inútil, ele interrompeu minha brincadeira aos gritos. Senti uma sensação especial ao vê-lo assim, esperei que ele fosse mais passional e me colocasse na linha, mas ele se apagou antes que eu pudesse acabar a fantasia. Se não me serve desse modo, que me sirva de outro então! Saí fazendo exigências, pedi pizza e ele comprou, pedi sorvete e ele colocou pra mim, ele não podia fazer mais nada. Eu não conseguia sair daquela insatisfação. O tempo inteiro ele ficava me alisando, isso tem hora que enche, pedi um sonífero, tomei e em meia hora estava semiacordado, lembro que ele transou comigo assim, nesse estado, na verdade só lembro de flashes dele tirando a roupa e me tocando. Se foi com ou sem camisinha, se ele enfiou objetos em mim ou o que ele fez eu não lembro, o sono foi muito pesado, ele se divertiu bem por mais de vinte e quatro horas, porque dormi quase dois dias ininterruptos.

Ao acordar e refletir eu cheguei a conclusão de que ele não era nada pra mim, de que eu não era mais alguém que descansa sob a sombra de outrem, eu estava livre das prisões do sentimentalismo, não obstante, eu me sentia algo usado por outra pessoa. O progresso era nítido, eu me bastava, pois quem eu transava não conseguia me completar. Esse foi o fim da minha busca pelo que chamo de amor louco, foi também o nascimento de um novo Pietro, com os sonhos destruídos e enterrados no estoicismo. Agora me bastava ligar o foda-se, se antes eu não tinha nada a perder, agora não tinha pretensão do que ganhar. Peguei o dinheiro e me mandei, fiquei duas semanas sem fazer absolutamente nada que não quisesse, o que adianta viver para preencher um espaço delimitado pelo sistema? Pra mim, vontades e finalidades são coisas diferentes, a vontade é o irracional e imediato prazer, a finalidade é a racionalização do que queremos, e essa não vem de dentro, senão de convenções idiotas que resolveram impor. Eu bebo, eu fumo, eu cheiro, eu fodo com quem e com quantos eu quiser, a porra do corpo é meu, a porra da vida é minha, que eu estrague, se estragar significa se divertir e curtir ao ponto de poder morrer no apogeu do prazer. Em intensidade, a duração vale mais que centenas de vidas regradas juntas. Estar no buraco é algo tão relativo...

Fiquei a lembrar de como eu era antes de Alberto. Ele foi um elemento de cisão, como acontece com as células, as metades se dividem, a metade sombria foi a única que sobreviveu e que pode se dividir em mim, sendo ela a matéria-prima do que me tornei, seria impossível não ser sombrio por conta dessa “raiz” derivadora. Claro que sinto falta do antigo eu, que carregava em equilíbrio os polos brancos e pretos, claro que choro de tristeza e entro em profundas depressões por luto. Não renego a brancura, mas não faço mais questão por ela, ela foi assassinada, é a inocência perdida. Talvez tudo fosse diferente se algo desse errado naquele dia no shopping, mas a questão é que não deu, eu não posso voltar atrás e desfazer o que foi feito, tenho de ser essa nova persona, esse novo ser sobrevivente, ele precisa ser bem aceito por mim, pois sou ele. Se dói, se eu me machuco, isso é um mero detalhe comparado a uma tentativa de negar quem sou, preciso não dissimular em tempo integral, porque dissimular machuca ainda mais. Eu posso estar chorando, mas eu poderia estar morto em vida, sem derramar uma lágrima, mas não por felicidade, e sim por ausência de autenticidade.

Ame, sofra, sinta dor, muita dor, viva sabendo que não morrerás infeliz no próximo segundo, e sofra por ter posto qualquer precaução abaixo da necessidade da satisfação, seja louco, mas viva e sinta que esta vivendo.

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Comentários

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Tragédia pessoal é totalmente relativo quando o ponto de vista de quem sofre é diferente, ele poderia encarar como um fardo e se debater sobre ele até a exaustão, mas ele prefere fazer desse fardo sua forma de gozar. Quando um cara tá apanhando numa transa, sendo torturado pelo sádico, sofrendo as piores humilhações, e quando questionado o cara diz que gosta, quem sou eu para impor minha noção de sofrimento a ele? É algo relativo mesmo. A eliminação do sofrimento no filosofia estoicista (ou conformista se quiser chamar assim) é dada pela negligência do mesmo, até que o sofrimento se torne algo irrelevante e nulo, pois convenhamos que o conformismo perfmite isso. Pensa no caso do sadomasoquismo, se formos universalizar o conceito de dor, como explicar o prazer RELATIVO que dela o masoquista extrai? Conceitos são arbitrários, por isso mesmo na introdução, lá no primeiro conto eu falei em "despir-se de conceitos anteriores" para se tirar uma noção maior dos contos de Pietro.

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Custa bem caro esse "foda-se tudo", nao? Talvez Pietro tenha chegado no limite dele onde nada mais importa, nem ele mesmo. Triste isso. Fazer da propria decadencia um meio de conformismo, algo quase cinico. Mas quem sabe se a noçao de tragedia pessoal nao é algo relativo, nao é mesmo?

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