Fazendo arte IV

Um conto erótico de Fernanda
Categoria: Homossexual
Contém 1216 palavras
Data: 18/02/2010 04:48:26

Estava frente a frente com ambos e não via proteção em lugar algum. Os convidei para conversar em um restaurante próximo e enquanto era seguida, aproveitava o tempo para pensar em uma explicação, se é que era explicação o que queriam. Digo isto porque não é de se esperar que uma crente que a muito custo depila as pernas, querer conversa com o rapaz que havia dado a seu filho uma passagem carimbada, sem escalas, para o inferno. Certamente com ela, aquela conversa bonitinha da lei do amor não colaria.

Vejam, não quero com isso, desmerecer aquela senhora e seu distinto esposo. Sempre se mostraram muito corretos comigo, inconscientes de sua própria hipocrisia, que os permitia se considerar cidadãos de bem e dormir tranqüilos enquanto sonhavam que seu filho havia encontrado a esposa perfeita. Ao descobrir que esta esposa tinha um pênis, por mais que ele não fosse utilizado, ela perdia todas as suas qualidades e se tornava "uma criatura do demônio", segundo as palavras que ouvi daquela boca. E esta ainda foi uma das mais leves expressões utilizadas.

Enquanto aguardávamos o prato de entrada, fui ameaçada. Diziam que contariam a meus pais. Esqueceram-se, contudo, que estavam diante de uma atriz. Ria descontraída, perguntando se achavam mesmo que eles não sabiam. De qualquer modo, a carona viria em boa hora, complementei me deliciando maliciosa com o olhar de fúria do casal.

A verdade é que não havia o que ser feito e eu sabia disto. Eles poderiam aceitar a vergonha e guardar para si o amor do filho por uma mulher não convencional, ou poderiam espalhar a própria vergonha pela cidade. Como não tínhamos qualquer pretensão de desistir um do outro, qualquer movimento oposto levaria a um escândalo indesejado naquela família tradicional e acima de qualquer suspeita.

O que poderiam fazer? Me matar? Me bater? Sua própria fé e os medos que com ela vinham, os obrigava a se resignarem. Não é bonito, mas devo confessar que me deu certo prazer sádico em ver as lágrimas daquela pessoa que me suplicava abandonar a vida do Raul... Ainda assim, restava a dúvida a qual fiz questão de sanar. Como descobriram? Não quiseram me dizer... Mesmo insistindo, se recusaram. Aquela seria sua vingança contra mim e eu ainda não sabia. Por ora, desisti.

Os dias se passaram e tudo tinha voltado ao normal. Por via das dúvidas, tomei coragem e contei lá em casa. Não foi exatamente a notícia mais animadora que já receberam, mas não foi também nenhum fim de mundo. Para ser mais precisa, digo que ninguém chegou a se surpreender, exceto meu irmão mais velho. Não que ele não me achasse gay (tanto achava, que chegou a dizer isso na minha cara inúmeras vezes durante nossas brigas infanto-juvenis), mas sempre teve esperanças de que eu fosse o ativo.

Aliás, que fique claro: Meu problema nunca foi ser ativo ou passivo. Eu simplesmente tinha prazer em dar prazer ao Raul. Se ele me pedisse para enrabá-lo eu faria com gosto, mas nunca recebi tal pedido. E se o Raul fosse uma mulher, o amor seria o mesmo, embora as circunstâncias fossem provavelmente outras. Como ele se sentia confortável no papel de homem, eu adorava ser seu par ideal na forma feminina.

Ainda assim, nenhuma das famílias se sentia confortáveis conosco. Veja, não os culpo... Talvez se fosse um pai criado dentro de uma visão de mundo hétero, eu não conseguisse dormir sabendo que meu filho, pelo qual acendi charutos no nascimento, ensinei a jogar futebol e a arrotar na infância, agora estava no quarto ao lado, de batom na boca e gemendo e pulando feliz com um caralho enterrado na bunda.

Destarte, acho que ficou clara a inviabilidade dos almoços de domingo, festa de casamento e churrasco na laje... Deste modo, nos contentamos em nos amar a partir de então em motéis. Por um lado, era triste a rejeição de nossas famílias. Por outro, a hidromassagem recompensava nosso voto de amor. Aliás, nessa época eu descobri que gemer alto é muito mais gostoso. Descobri também que espelhos no teto são a mais incrível invenção da humanidade, depois da maquiagem a prova d'água. Sério, o tesão era multiplicado quando via os músculos das costas e das nádegas do Raul se enrijecendo a cada movimento que fazia sobre mim.

Outro lado positivo destas revelações foi que eu podia já sair de casa preparada para ele, o que me fazia economizar com táxi, pois meu namorado me buscava em casa com seu carro. Lembro de algumas vezes ter notado que em casa meu pai espreitava com desgosto o momento em que nos beijávamos num "olá" que dava a tônica de nosso encontro. Lembro que em certo dia eu saí com um vestidinho de algodão, rosa - choque, bem justo ao corpo. Ele tinha um decote discreto e igualmente discretas mangas compridas, mas a barra, mais estreita, dava muito volume em minhas ancas, contrastadas com a ainda fina cintura.

Junto, usava um scarpin branco, de couro, 8 cm. Na mesma cor estava meu conjunto de espartilho e fio-dental rendado. Com uma maquiagem modesta, mas sensual e um penteado simples, fui encontrar Raul no portão e recebi seus lábios nos meus, ao mesmo tempo em que minhas coxas recebiam suas mãos para o desespero do meu pai na janela. Neste dia, fomos ao teatro ver meus colegas trabalhando. Foi neste dia que conheceram, após fecharem-se as cortinas, o homem que me possuía há tanto tempo.

Jantamos juntos, sorrimos juntos, contamos nossa história e ouvimos tantas outras. Depois, estendemos o happy hour a dois para nosso ninho provisório. Lá estávamos nós novamente nos amando. O Raul, encostado na borda da mesa, segurava em minha cintura por trás e eu, ainda sobre o salto e com o vestidinho levantado, rebolava devagar, preenchida por seu falo, apoiando minhas mãos sobre as suas mãos.

Às tantas da madrugada, deitados nus, em concha, sentindo o cheiro de nossa libertinagem, ouvi sua voz bafejando em minha nuca e causando arrepios. Ele dizia que agradecia a Deus por ter tido a inspiração de confessar a seus pais a verdade sobre nós. Foi ele. A última peça do quebra-cabeça estava agora em seu devido lugar. Ele foi o fraco que revelou nosso segredo. Foi ele quem me traiu.

Sim, traiu. Ora, que outra palavra posso usar, se não traição? Era um segredo nosso. Uma roubada na qual ele me colocou e ninguém nunca desconfiaria. Graças a isto, hoje eu tinha perdido o carinho de meus familiares, minha vida social, meu futuro primoroso nas artes... Perdi meu tempo e minha dignidade. Sentia-me particularmente pior por chorar pela segunda vez em seus braços, como quem espera de seu algoz um conforto que na verdade nunca virá. Por que fez isso comigo? Porque os convidou para ver a peça e eles me reconheceram no flyer.

A bem da verdade é de uma inocência quase estúpida supor que não reconheceriam minha versão sapo. Um atentado contra a inteligência. É como se uma das gêmeas Olsen aparecesse vestida de homem e sem maquiagem. Isso não faz com que deixem de ser reconhecidas na rua por um fã qualquer. Seria digno de pena um raciocínio como o dele, não fosse eu a parte prejudicada. Como poderia confiar nele no futuro?

Estava tudo acabado entre nós...

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